O que pensaram os condutores da composição vendo tua ronda na gare? Uma viagem... um passeio ao interior da Alemanha?
segunda-feira, 16 de novembro de 2009
Carta a Robert Enke
O que pensaram os condutores da composição vendo tua ronda na gare? Uma viagem... um passeio ao interior da Alemanha?
quinta-feira, 15 de outubro de 2009
Kama Sutra
Mas o casal do 03 tem se amado mais selvagemente por estas noites; antes era pra já que se ouvia os passinhos correndo para o benheiro e o chuveiro abrindo. Agora não; tem se prolongado e eu que não durmo ao menor ruído, acordo e sou forçado a ouvir aquele rangido metálico de parafusos frouxos de vai e vem com o pausar que anuncia as mudanças de posição tal como no Kama Sutra.
O pior é que não posso dizer nada à síndica - uma carola - primeiro por constrangimento e, segundo, por que no fundo espero que esta onda de paixão tome conta de todo o prédio rosa, e depois de toda as cercanias o que seria muito bom.
domingo, 6 de setembro de 2009
Tabela periódica.
- Só um pouquinho... – ele secava o ponche de cidra do paletó enquanto se aproximava.
- Vem logo! Ele é meio desastrado, mas é sangue bom.
- Amália, Polônio; Polônio, Amália – esse era o Meyer, milico, carioca do Meyer; por isso Meyer. Pensava jogar um nos braços do outro.
- Então, muito prazer senhorita Amália – disse Polônio.
- O prazer é meu, mas pra que esta formalidade? – perguntou Amália, irônica.
- Não quis ser formal... é só por que recém nos conhecemos, saca? Mas afinal, o que a traz ao Troféu Forças Vivas? É uma digna agraciada? – Polônio falava, mas não se detinha em sua interlocutora. Olhava para todos os lados, por cima das cabeças, como se procurasse algo.
- Continua a formalidade – ela começou a olhar também sobre as cabeças - De que época tu és? Há séculos não se usa essa expressão “Saca?”.
- A formalidade é só por que falei “digna agraciada”?
- “Digna agraciada”, ora bolas!
- “Ora bolas!” é tão fora de moda quanto “Saca?” – e aí saíram os dois primeiros sorrisos da curta relação.
- Na verdade vim acompanhando uma prima que recebeu o troféu – continuou Amália.
- E onde ela está?
- Não sei. Deve ter se arrumado por aí. Já estava bem altinha...
Uma pausa para uma biritas e....
- Curioso! – disse Polônio, com a testa franzida e coçando a orelha – Primeira vez que conheço alguém com nome de Amália, pessoalmente, pelo menos. Na verdade só conhecia a Amália Rodrigues, a cantora portuguesa.
- Justamente! Foi em homenagem a ela o meu nome.... Minha mãe... sabe? louca por fado. E o seu? É em homenagem ao deus grego?
- Que deus grego? Que deus grego que se chame Polônio!
- Me refiro a Apolo – respondeu Amália, balançando a cabeça em movimentos circulares.
- Neste caso me chamaria Apolônio.
- Apolíneo, tu quer dizer?
- Tá bem, desisto! É que meu pai era químico. Adorava Marie Curie, a química polonesa. Minha mãe até sentia ciúmes – o silêncio denunciava que ela ainda não tinha entendido - Ela descobriu o elemento químico radiativo.
- Quem? Sua mãe?
- Na verdade, Marie Curie. Aí batizou de Polônio em homenagem a Polônia..
- Eu sei, estava brincando. Estudei química no colégio. Marie, mulher de Pierre... Curioso... - hesitou um momento – conhecer alguém que saiu da tabela periódica. Na verdade, já conheci outros elementos químicos pessoalmente. O Germano, o Arsênio, o Hélio..., mas Polônio ainda não conhecia. Mas gosto. É forte, másculo, tem atitude e é sonoro.
- Nome com atitude! Esta é boa, mas eu também gosto do meu nome. É singular...
Para quebrar de vez o gelo, Polônio armou-se de um sorriso sem vergonha e, conformado com a peculiar alcunha, lascou:- Mas poderia ser pior. Por sorte não me chamo Estrôncio ou Xenônio.
segunda-feira, 17 de agosto de 2009
Salsos chorões
Então, retirei de um livro o nome pelo qual passei a chamá-lo de um certo dia em diante: salgueiro. Não entendera o salso, na verdade e, tão logo parti, perdeu o chorão o embate com o muro na afeição dos seus proprietários e lhe cerraram as bases.
Foi em Pequim que compreendi o salgueiro, não o chorão, o salgueiro, levemente inclinado, a árvore chinesa por excelência.O salgueiro tem qualquer coisa de evasivo. A sua folhagem é impalpável, o seu movimento assemelha-se a uma confluência de correntes. Tem mais do que as que se vêem, do que as que deixa ver. Não há árvore menos ostensiva. E embora sempre fremente (não o estremecimento breve e inquieto das bétulas e dos choupos), é como se o ar o ignorasse e o deixasse vogar e nadar despreendido, sempre no seu lugar ao vento, como o peixe na corrente do rio.É pouco a pouco que o salgueiro nos forma, dando-nos todas as manhãs a sua lição. E uma paz feita de vibração nos toma, de tal modo que finalmente já não podemos abrir a janela sem sentir vontade de chorar.
domingo, 16 de agosto de 2009
Pensamentos de um homem livre.
- Enfim, envolvido.
Inesperado foi virem à cabeça pensamentos de homem livre e desejar repentinamente tomar um ônibus e ir ter na grande cidade mais próxima e reencontrar alguns amigos do tempo de universidade e alguns outros apresentados por estes amigos da universidade. Especialmente agradável foi se imaginar na casa de alguém que mora próximo a uma praia – de mar, é claro. Alguns dias, sem data marcada para retornar. Podia sentir a areia sob os pés e o vento que vinha da mata sacudir a palha dos quiosques. Escolheria uma das espreguiçadeiras e ficaria prostrado, talvez lendo alguma amenidade, talvez jogado ao ócio completo, fazendo esforço para registrar cada segundo daquele momento fugidio, enquanto os barcos brancos desaparecem atrás das mil ilhas.
Mas isso, esses pensamentos, só duraram alguns breves momentos. Depois, passou a ter exclusivamente pensamentos de prisioneiro. Obviamente, não preso a uma cela, mas a um quarto de uma janela que nunca era aberta, a uma sala sem móveis; nem mesmo uma poltrona vermelha com algumas almofadas para recostar e folhear um livro, a paredes sem quadros, a cantos sem plantas.
Existem inúmeras formas de se sentir privado de liberdade. A cela é a melhor encarnação dessa privação, mas como naquela campanha de um jornal que sugere breves aprisionamentos urbanos, mostrando a foto de um longo engarrafamento, há outros modelos de cárceres. A disciplina humana representa bem um modelo crônico, o de se habituar a tudo e tardiamente surpreender-se prisioneiro. Atormentava-o, no entanto, o desejo por outra pessoa, não uma pessoa em especial – a humanidade é razoavelmente especial. O quarto vazio se enchia de pessoas que havia conhecido em outros contextos e as quais desejara. Um arroubo agudo de homem livre. Era possível ver detalhes de seus corpos e o motivo do desejo engendrado neles; as caras, naturalmente, eram mais reais, pálpebras fechando-se e revelando longos cílios negros, pontas de língua umedecendo lábios e um ou outro joelho à mostra, panturrilha flexionada visível. Servia, com eficiência, para passar o tempo, mas o seu tempo se esgotava, sinal que não estava tão aprisionado assim, pois o que um prisioneiro mais tem, é tempo.
Ligou a tevê. Não havia sinal de canal algum. Talvez nem tivesse antena. Vestiu as calças, escovou os dentes, saiu. O dia estava frio e ensolarado. Jogou a chave por debaixo da porta. Talvez retornasse, mas sem data marcada. Como o próprio Jean Sorel, dizia “tenho pão e sou livre.”
Encolhido e com as mãos apertadas no bolso da calça jeans, seguiu. Sentia o vento minuano gelado cortar a pele do rosto, sentimento maior de um homem livre.
segunda-feira, 15 de junho de 2009
Cartas do ermo.
Não há vento nem sol. Será que a vida pode prosseguir na terra sem sol, sem movimento atmosférico, sem o tremer das árvores?
Uma amiga jornalista diz que é como viver em Londres e eu completo dizendo que até pode ser, mas sem o Tamisa e sem nenhum charme.
Há tumultos por todo o prédio. É possível que o vizinho de cima esteja se mudando pelo arrastar de móveis e o barulho que vem do último andar, falou-me o outro vizinho, só pode ser o senhorio que resolveu trocar as caixas d’água.
Trocar as caixas d’água! Para que? É uma nova norma da prefeitura. Se pelo menos fosse numa segunda-feira...
Abro o jornal diário e leio a notícia das mais curiosas sobre a investigação de um subprefeito que é acusado de má gestão do dinheiro público. Nada de novo além do depoimento de uma funcionária que se soma ao inquérito. Ela afirma ter sido obrigada a cuidar do filho bipolar do subprefeito. Tinha que fazer expediente na casa do chefe e levar o rapaz até o psiquiatra uma vez por semana e, apesar de toda essa dedicação, era forçada a ouvir os gritos e as grosserias do homem durante o expediente. Mais uma vítima de assédio moral. Em sua defesa disse o subprefeito: “o que esperam de um gringo aqui no meio do mato?”. Foi esta mesmo a resposta que ele deu, meu caro.
Que gritem e esbravejem, decerto. Mas do distrito que comanda não se pode dizer que é um lugar selvagem, pelo contrário, é bastante urbanizado; há algumas grandes indústrias por lá e também um considerável fluxo de turistas. Tu vais gostar do castelo que abriga uma cantina. Deveria arrumar uma melhor desculpa, este senhor, não acha?
Do filho bipolar do subprefeito passo a pensar em um novo amigo. Trabalha na lancheria aqui perto de casa, aliás, casa de lanches, lancheria é pejorativo. Atende a todos sem falar uma palavra. Não me intrigara até então, pois a expressividade no olhar dava conta de toda a comunicação necessária a uma ação de varejo. Quando puxei a banqueta e me aproximei do balcão – sabes como é, pois bem me conheces – puxei aquela conversa e então percebi o silêncio unilateral. O silêncio tinha um significado, todavia, nenhuma causa aparente. Não se parece com trauma familiar, pois são bastante amistosos todos os parentes os quais não se incomodam com o silêncio do primogênito. Não é surdo-mudo, autista e nem o gato comera a sua língua. Um belo dia ele parou de falar; simples assim. Na verdade falava com a mãe, mas só o estritamente necessário. O irmão nascido depois já veio ao mundo com o direito de ouvi-lo; são dois ao todo, então, que ouvem a sua voz. Os outros devem se contentar com acenos, bilhetes e expressões faciais.
É curioso, mas não espantoso nem estranho vê-lo procurar o irmão de 11 anos para ser seu intérprete em situações mais complexas. Ele cochicha discretamente no ouvido do pequeno e o menino rapidamente completa a interlocução.
Como vês, meu caro, em todo o lugar, cada um de se defende com as armas que tem.
Mas voltando as cerrações e por causa delas sugiro que adies tua visita. Não é por mal, mas penso que não terás boa receptividade. Há alguns roteiros mais agradáveis, nesta época. Se bem que não falo como um turista e então tudo pode ser uma questão de ponto-de-vista.
Se decidires vir, avise logo, pois preciso providenciar mais um aquecedor.
domingo, 31 de maio de 2009
Sem pressa.
“Se o mundo do futuro se abre para a imaginação, mas não nos pertence mais, o mundo do passado é aquele no qual, recorrendo a nossas lembranças, podemos buscar refúgio dentro de nós mesmos, debruçar-nos sobre nós mesmos e nele reconstruir nossa identidade; um mundo que se formou e se revelou na série ininterrupta de nossos atos durante a vida, encadeados uns aos outros, um mundo que nos julgou, nos absolveu e nos condenou para depois, uma vez cumprido o percurso de nossa vida, tentarmos fazer um balanço final.”
Ao final desta citação o grande pensador italiano acrescentou que neste momento “é preciso apressar o passo”.
Não é o caso de vó Nita. Interveio a mão pesada do tempo nos seus cabelos brancos, nas rugas que redesenharam suas faces; mas o tempo não deixou traços na consciência e se os deixou não são visíveis ao nosso olhar. Poucas pessoas são tão lúcidas como minha avó. Não sei, e não por teimosia, mas parece que ela ignora alguns fundamentos do tempo e não atribuam a minha avó aquela máxima do velho com alma de jovem, pois decerto, não há nenhum problema com a alma dos velhos. Refiro-me ao tempo real, o do terreno da física. É este tempo que ela parece engambelar.
É preciso ter claro que “o tempo da memória segue um caminho inverso ao do tempo real: quanto mais vivas as lembranças que vêm à tona de nossas recordações, mais remoto é o tempo em que os fatos ocorreram”. De novo, Bobbio. Assim, sua memória saudável deve tornar vivas uma infinidade de lembranças, que ela revive a cada amanhecer, o amanhecer que pode ser qualquer um num intervalo de 100 anos. São, então, milhares de amanheceres, incontáveis chegadas e partidas; inúmeros verões, invernos; flores vermelhas, folhas amarelas; inventores, gênios, descobertas, algumas guerras, momentos de paz, de grades, de liberdades, de revoluções, de movimentos, de heróis, e, enfim, de tardes e noites.
Não é possível aos jovens compreender um tamanho testemunho.
Quantas vidas descendem de seu ventre? Quantos feitos poderiam lhe ser atribuídos? Ahh! ...o que faz o vinho e algumas latas de sardinha a um sangue lusitano! Quantas identidades foram forjadas pelos seus genes?
Espero lhe ter herdado uns quantos, pois a cada um somado melhor será o meu caráter. Todavia não herdei o gene colorado e devo dizer que este não lamento. Sou gremista: paixão que herdei de seu genro e só isso já seria suficiente para supor que ela compreende. Mas ainda há a paixão, aquela latina, ibérica, e de paixão certamente vó Nita entende, pois senão entendesse, não teria vencido os 100 anos.
domingo, 17 de maio de 2009
Topgun.
Em pouco tempo, James virou a galhofa da turma, mas ele nem ligava. Era filho único de militar e de uma professora e estava em dia com sua auto-estima. Sendo do PV, tinha uma legião de fãs entre as meninas do curso técnico de contabilidade e a cada semana ele aparecia com uma diferente. Na educação física, diziam sempre que sua namorada era a boqueteira da gurizada do time de basquete e ele, por vias das dúvidas, trocava logo por outra, igualmente feia. Mas o que James desejava era impressionar a Terezinha que, além de ser a mais bonita da sala, era primeira-prenda e dançava na invernada do Farroupilha.
Nas avaliações do bimestre ele foi a surpresa; se ralou como a maioria, mas logo se recuperou. Diferentemente do Fábio Gamino, que só comia choquito pelos corredores e mesmo assim fazia com um pé nas costas as provas da Ana Olinda, James dependia de seu esforço para ter boas notas.
Mas o segredo da quarta-série só eu e o Dutra conhecíamos. Não éramos colegas, mas estávamos no mesmo pelotão para desfilar no 7 de setembro. James, de calça branca e jaleco dourado de porta-bandeira, emborcou litros de iogurte para aliviar o calor na concentração e não convidava ninguém.
Entramos marchando na Praça. Palpitava agitado o coração brasileiro à palavra Pátria. Eu e o Dutra íamos logo atrás de James, quando ouvi um “chuac, chuac” compassado, seguido de um choro baixinho. Ele estava todo cagado, uma mancha amarela percorria toda a perna direita até os sapatos que transbordavam a caganeira. Rebelaram-se a províncias internas de James, por culpa do iogurte. Em segundos todo o pelotão estava às gargalhadas, seguido pela multidão da praça. Os pais de James não riam, naturalmente, mas sua mãe guardou a máquina Yaschica na bolsa. James cruzou frente ao palanque, onde todos riam sem se agüentar, ainda mais cagado, chorando como um bebê e conduzindo o lindo pendão verde-amarelo.
Ao que se sabe e do que se pode presumir da convivência com ele nos anos seguintes, James não alimentou nenhum trauma relacionado àquele desfile de sete de setembro. O desejo de ser top gun não rolou, mas James copiou seu pai e hoje é sargento do Exército Brasileiro.
Segredos do chef.
Não tomo leite, não como mel – ainda assim compro 1 kg de mel por mês de um ex-colega de trabalho, pois conheci o frango ao forno dourado por pinceladas de mel - especialidade de Adriana Simonin; que um dia será feito por este que vos escreve em louvor ao mel e a suas sagradas aplicações.
Cozinho com freqüência na casa de uns amigos; um deles não come cebola e afins, o outro é alérgico a tomates, todavia, não os desagrado; é possível sim preparar pratos sem cebola e tomate. Bem, talvez não na Itália como igualmente não seria plausível imaginar a culinária francesa sem o leite, a manteiga e a pimenta do reino. Desafio é cozinhar para alguém especificamente, que se contenta com nissin, Doritos e vive a dizer “é que não sou muito das carnes”.
Há um milagre na junção do azeite ao interior das nozes e a algumas folhas de manjericão. Tira-se algo aqui e acrescenta-se lá; substitui-se e sai do forno uma nova versão que terminará no mais básico e trivial dos rituais, a mastigação. Por que tanta reverência para afinal acabar num ato vital e salivar?
Antropólogos e sociólogos teriam a resposta na ponta da língua. A comida é a mais intrincada sutileza das culturas. Pelos hábitos culinários das civilizações, a evolução dos modos à mesa, a disposição dos talheres e as técnicas de cocção, revela-se o cerne do processo civilizatório. Não considero exagero a afirmação, mas tenho minha própria assertiva. Evoco, de novo, a felicidade e a frugalidade dos instantes. Não pode haver satisfação humana maior do que preparar uma refeição para quem se gosta, ama ou admira. Vejam como se multiplicam as encomendas de lofts aos arquitetos com aquelas grandes cozinhas sem paredes, integradas ao living. Passar do cru para o cozido ou mesmo dispor folhas verdes em um prato é a arte que sobrou aos normais, à média. A cozinha, senhores, é a moldura dos que não manejam pincéis, não dedilham cordas, não fazem rir ou não encantam com a própria beleza.
Já não como chocolate com a mesma verdade que comia antes, lambuzar-se. Mas me inspiro no tomate, o mais diverso dos alimentos. Devo experimentar de tudo, inclusive do quibebes e da carne de porco, desvendar o sabor das culturas, cheiro das ervas, tomilho e tudo que vier com tomate virá bem. O tomate, fruto bonitinho da planta asquerosa, tão sociável que cai bem com tudo.
Não me espanta a infelicidade da amiga Jane que é alérgica ao tomate e por motivo igual não come chocolates.
domingo, 3 de maio de 2009
Espinhas de peixe.
- Filho do João, tio do Pedro.
Não sei o motivo, mas em certa etapa da vida, os homens calejados pela aridez pampeana, tendem a reprimir a voz de choro e segurar as lágrimas quando alguma memória se alvoroça e seu Jesus, tendo diante si tal alvoroço, reteve-se e dispensou-me apenas um breve abraço, seguidos de tapas fortes, rítmicos e marcados, em minhas costas.
- Este é o filho de um grande amigo – disse ao companheiro de passeio.
Referia-se ao meu pai que além de amigos nutriam a mesma velha paixão pelo MDB. Além do velho João somente o Seu Jesus expressara mágoa em me ver enveredar por outros traçados políticos. Se o fez, é por que sabia que podia. Se já fora pai de tantos, porque não de mais alguns? Era da família.
Em outras ocasiões nos encontramos novamente, ali pelos bancos da Praça Getúlio Vargas, sempre pelas manhãs ensolaradas. Ele, como se treinasse diariamente para não deixar escapar a imagem de minha figura por entre as mechas grisalhas, já de longe se adiantava e dizia meu nome “Júnior!” sempre acompanhado de um aposto “irmão da Aninha”, “tio do Pedro!”. Num desses encontros surpreendi-o orgulhoso de participar de uma confraria de ex-militares egressos da cavalaria, a um amigo de prosa, e usava no peito uma pequena insígnia que o identificava como tal. Ao saber de minha passagem pela arma - que fora fuzileiro como ele - disparou que não havia outro jeito, tinha que ingressar na confraria. Na próxima reunião meu nome já estaria na lista; seria eu o primeiro a fazer parte na sociedade por indicação dele. Há tempos procurava uma pessoa, dizia e “...estava tão perto”. Quanta honra meu velho!
Na última vez que nos encontramos, em frente à Urcamp, ele estava a caminho do jantar e da reunião com seus confrades cavalarianos. Lamentei que não pudesse acompanhá-lo, pois tinha um compromisso de trabalho. Lamentei menos do que ele, percebi, talvez por que não tinha a sua mesma pressa, a sua mesma ansiedade. Declarava-me sem tempo, o tempo que na verdade o meu amigo já percebia lhe faltar.
Eram diferentes nossos relógios e só o tempo nos faz perceber a sua própria relatividade. Estou certo, no entanto, que Seu Jesus, “pelo – duro” assim como eu, reconhece que as melhores coisas que temos a dizer são como espinhos de traíra que teimam em se atravessar na garganta.
Com quase todas as letras.
Dias depois, soube por um desses amigos, que ao contrário do que pensava, meu perfil no Orkut permanecia intacto. Verifiquei e confirmei, estava lá, incluindo um novo scrap. Depois de lê-lo, deletei-o como de hábito e logo me ocupei em refletir sobre o porquê de sair da comunidade de relacionamentos se nem mesmo a levava a sério. Era irrelevante estar ou não, ainda que no início não pensasse assim. Em termos gerais, parecia ser apenas uma perda do interesse e talvez uma certa frustração. Não recebia mais scraps com a mesma freqüência, na verdade, em semanas, respondia a dois ou três apenas. Também não era adicionado por alguém que há tempos eu perdera o rastro, para mim, a melhor qualidade do site. O Orkut, enfim, já havia sido mais eficiente.
Sei de pessoas que saíram do Orkut porque ficaram famosos como um amigo ator. Sei de outras pessoas que saíram e retornaram. E se sei é porque fui convidado mais de uma vez pela mesma pessoa e não porque saio pesquisando sobre o assunto. Poderia, tranqüilamente, fazer o mesmo. A dificuldade seria restaurar a rede de novo, talvez utilizando novos critérios, os quais não estariam contaminados com a ânsia da novidade. Decidi pela exclusão, que não se efetivaria naquele momento. Era coisa para outra hora, outro dia.
Antes de fechar o programa, no entanto, fui percorrer e meu perfil, rever como me apresentava e o que escrevia sobre mim mesmo. Da parte superior da tela retirei a conclusão de que não era bom nisso, falar de mim mesmo.Detive-me brevemente na leitura de um dos dois únicos que constam.Se não encontrava nenhum motivo que justificasse a exclusão, ao menos encontrei um que trabalhava pelo contrário, pela manutenção do meu perfil, e este motivo era o depoimento a meu respeito postado por um amigo. Sem reservas e falsa modéstia, admito que ninguém me descreveria melhor. Por isso, está lá, o meu eu virtual. Meu perfil do Orkut resiste graças às palavras do amigo, que talvez tenha superestimado o meu talento para "enfileirar palavras", o que não importa, já que me descreveu com a pungente franqueza que só um bom e velho amigo é capaz.
sexta-feira, 1 de maio de 2009
Branco e vermelho.
É uma colega de trabalho que deixa sempre a filha na escola do outro lado da rua e na volta passa para ver se estou por ali.
- Faço nada além de folhear estas revistas do século passado.
- Deixa disso e vamos até os “macaquinhos”.
Sigo o conselho e ao largar as revistas, dentre elas escapa uma folha arrancada de algum livro novo. Nossa! De um livro novo! Nela li este poema, cujo trecho reproduzo abaixo:
A dor, forte e imprevista,
Ferindo-me, imprevista,
De branca e de imprevista
Foi um deslumbramento,
Que me endoidou a vista,
Fez-me perder a vista,
Fez-me fugir a vista,
Num doce esvaimento.
Como um deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Fez-se em redor de mim.
Todo o meu ser suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso...
Que delícia sem fim!
É “branco e vermelho” o nome. Mas senão fosse este o nome, assim o nominaria, pois vinha sonhando a tempos palavras assim enfileiradas, domesticamente ajustadas, justapostas uma a uma e assim resolvi me aventurar pela poesia, depois de cansar de tanta prosa.
sexta-feira, 17 de abril de 2009
Para lembrar o mestre nos seus 200 anos
Foi há muitos e muitos anos já,
Num reino de ao pé do mar.
Como sabeis todos, vivia lá
Aquela que eu soube amar;
E vivia sem outro pensamento
Que amar-me e eu a adorar.
Eu era criança e ela era criança,
Neste reino ao pé do mar;
Mas o nosso amor era mais que amor
O meu e o dela a amar;
Um amor que os anjos do céu vierama ambos nós invejar.
E foi esta a razão por que, há muitos anos,
Neste reino ao pé do mar,
Um vento saiu duma nuvem, gelando
A linda que eu soube amar;
E o seu parente fidalgo veioDe longe a me a tirar,
Para a fechar num sepulcroNeste reino ao pé do mar.
E os anjos, menos felizes no céu,
Ainda a nos invejar...
Sim, foi essa a razão
(como sabem todos, Neste reino ao pé do mar)
Que o vento saiu da nuvem de noite
Gelando e matando a que eu soube amar.
Mas o nosso amor era mais que o amor
De muitos mais velhos a amar,
De muitos de mais meditar,
E nem os anjos do céu lá em cima,
Nem demônios debaixo do mar
Poderão separar a minha alma da alma
Da linda que eu soube amar.
Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos
Da linda que eu soube amar;
E as estrelas nos ares só me lembram olhares
Da linda que eu soube amar;
E assim 'stou deitado toda a noite ao lado
Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,
No sepulcro ao pé do mar,
Ao pé do murmúrio do mar.
Traduzido por Fernando Pessoa
quinta-feira, 16 de abril de 2009
Nossos pais e nossos cães.
Rilke
Havia muito barulho nas redondezas e muitas coisas a fazer. Curso de inglês on-line, responder a e-mails. Uma manhã de sexta acelerada. Incomum para uma sexta – casual day de um desempregado. Senti o cheiro de fresias, flores que cheiram a chá. Profusão do incenso que queimava sobre a estante de livros. Imaginei-as brancas, frescas e perfeitas - as fresias. Na tela do laptop piscava a barra laranja do messenger.
Entendi o piscar incessante; a pessoa do outro lado dizia “Seu Osório faleceu”. Imaginei-o à calçada da Joaquim Antônio, cuia do mate em uma das mãos, cachorros à volta; dois labradores; um coquer, um vira-lata. Aquela sexta denunciava que o nosso inverno estava de dias contados; não esse inverno, todos os invernos, o inverno como estação. Seu Osório estaria feliz, pois como todo o trabalhador rural, gerente de lavouras de arroz, o frio não lhe trazia boas lembranças, toda aquele barro, toda aquela água e mais a geada; por isso somente era possível vê-lo à calçada ao fim das tardes amenas. Do contrário, estaria dando um jeito de fazer um fogo na lareira ou num chão, galpão qualquer que tivesse lenha. Coisas simples de um homem simples, cujo maior desejo em vida era ver os filhos formados ou encaminhados; o que ele viu.
A morte sempre é triste, não acredito em boa morte. Mas se há o mais próximo disso – da boa morte – há de ser o mínimo sofrimento físico e a felicidade na alma. Meu pai, disseram os médicos, morreu antes de cair ao chão, tal a força do enfarte. Morreu ao lado de um cão fujão, dos netos. Não sofreu, mas duvido que tenha morrido feliz. Seu Osório sofreu dores e desconforto, mas feneceu depois de uma longa vida de 75 anos dedicada a um projeto que viu cumprido. Morreu feliz, certamente.Ele não escreveu nenhum livro, mas tinha pauta para vários. Era um contador de histórias daqueles que só a aridez do pampa produz; expoente da mestiçagem ibérica e pelo – duro. Lembrava de todos os personagens e de suas inter-relações, de modo a deixar cair de inveja letrados quaisquer. Mais do que isso, sabia todos os nomes e a forma como os apresentava, não deixava dúvida sobre o caráter dos quais discorria. Talento cada vez mais raro esse, que contraria a tese de que os velhos não têm boa memória.
Se quiséssemos representar o homem alegretense como Paixão Cortes para o Laçador, seu Osório seria um bom candidato. Foi peão, gerente e dono de lavoura de arroz. Casou-se e teve filhos. Foi vereador do velho MDB durante os anos de chumbo. Tinha no falar, no andar, na alma a estirpe do gaúcho e chegou a experimentar a sensação ímpar de ouvir que ia ser avô.
Há pessoas que não morrem, fenecem, pois o seu legado está em todos os lados para testemunho e inspiração.
sábado, 11 de abril de 2009
Pesadelos
Porque não creio em Deus não rezo e tampouco tomo um copo de leite morno; sou alérgico a lactose. Resta enfrentar a insônia e é prudente cerrar bem fortemente os olhos, antes que os móveis, o guarda-roupas, a escrivaninha e o criado mudo vejam que estou despertado e começem a tagarelar sem pena de meus ouvidos.
A canção de Marlene.
E. E. Cummings
É uma sala ampla, em um prédio dos anos 40, vê-se pela altura do pé-direito e pelo vão das aberturas. Os moveis; estantes, mesas e escrivaninha, remetem ao início do século 20. Mesas de fórmica e armários metálicos destoam do geral. As raridades, no entanto, são os livros que pertenceram a um político e diplomata, cujo retrato ocupa lugar de destaque na sala. No lugar há apenas uma mulher, estudante de arquivologia, que trabalha como voluntária da catalogação e recuperação do acervo. Seu nome é Marlene e trabalha junto a um professor de história, que coordena os trabalhos. O professor chama-se Domingos. Ambos são jovens. Ela acadêmica e bolsista, 24 ou 25 anos. Ele professor doutorando, por volta dos 30 anos.
A bolsita abre algumas janelas e atravessa a sala até uma mesa que apara um aparelho de som. Ela põe um cd, fecha o pequeno compartimento e pressiona o play. Uma música começa a tocar. Marlene aprecia inicialmente e depois reduz o volume. Ela está em pé, próximo à mesa central da sala. Organiza alguns volumes.
A porta da biblioteca se abre. Ouve-se o som do sininho preso no alto da porta. Entra Domingos. Põe o casaco em um cabide e junto, a mochila.O professor resmunga enquanto despe um pesado casaco de lã.
Domingos:
- Pensei ter dito para retirarem esta campainha. Biblioteca é lugar de silêncio.
Marlene:
- Bom dia, professor. É uma harpa eólica...
Domingos:
- O quê?
Marlene:
- Uma harpa eólica....
Domingos:
- Se é uma harpa eólica, devia estar onde há vento...
Marlene não demonstra irritação. Domingos caminha em sua direção. Ela o vê caminhando em slowmotion. Os dois ficam frente a frente com a mesa coberta de livros entre eles, as mão próximas, prostradas sobre um volume de Irmãos Karamazov.Ao fundo toca a canção preferida de Marlene e ela sente que deve tocar a mão de Domingos. Seu coração dispara, a harpa eólica dindala e Marlene esconde sorrateiremante a mãozinha pálida no bolso do seu casaco de kashimir.
domingo, 22 de março de 2009
Depravações
É hora de parar, pois é impossível imitar Rimbaud ou Auden.
Diário do viajante solitário.

Sem dúvida há vantagens óbvias nas viagens solitárias. A mais clara me parece ser a de não ter que seguir roteiros pré-estabelecidos. O viajante só escolhe destinos movidos pela percepção momentânea, pelos sentidos, como uma mudança na direção do vento e isso é irresistivelmente prazeroso.
Pense nas excursões, promovidas por operadores de turismo, o transporte parece sempre seguir a direção contrária a nossa vontade; toma uma estrada de asfalto, enquanto queremos uma estrada de terra bem empoeirada, cuja seta em cruzamento indica “queda d’água” , a qual, inexoravelmente, vai ficando para trás, emoldurada pela traseira do ônibus. Melhor abrir as janelas pra sentir o vento na cara, mas elas estão lacradas e a brisa refrescante provém de um ar-condicionado. Quando se quer mergulhar numa piscina natural ou se jogar numa rede na praia, é hora de conhecer um povoado e comprar souvenires. O viajante solitário não experimentará isso; ele poderá seguir as setas que escolheu, as trilhas menos exploradas e os recantos mais secretos, refúgios da molecada local, e depois, se não tiver gostado do que viu, retornar ao que deixou para trás.
Há um detalhe pitoresco sobre as fotos, pois não há viagens sem elas. O viajante solitário só aparecerá em superclose nas que ele tirou dele mesmo ou a não ser que um gringo educado faça a gentileza de fotografá-lo, só trará fotos de paisagens na bagagem e essas em superclose limitadas pela extensão do braço, mas ele fará mais amigos e contemplará melhor os entardeceres.
Se ele quiser cair na balada e de lá sair carregado, é simples, a solução é fazer amizade com um taxista ou um barman e talvez seja prudente carregar um cartão com o endereço da hospedagem. No entanto, o mais provável, é que ele volte carregado por alguém que conheceu lá, na balada; os viajantes solitários se reconhecem na multidão.
Mas o melhor da viagem só está por vir, está sempre por vir e é exatamente o inesperado. Numa tarde, lá pelas seis, ele estará sentado em frente a uma Igreja Barroca em algum litoral, luxuosamente decorada para a festa do Divino, e encontrará um grupo de senhoras sexagenárias, relativamente perdidas. Ele decidirá por acompanhar aquele grupo de velhas aparentemente felizes a despeito de tão proximidade com o fim. Ele sabe onde fica a casa do festeiro de onde sairá a procissão, evento central da festa e motivo solene da vinda delas. E novamente e inesperadamente, sentirá aquela mesma vontade irresistível, nesse caso, a de seguir junto às bandeiras vermelhas e pombas brancas, e junto às senhoras que parecem aproximá-lo de casa, pois está longe, mas assim percebe que nem tanto. A música, a cantoria e os fogos atrairão as pessoas que encherão as portas e janelas. Outras seguirão à procissão e dirão coisas simpáticas ao viajante solitário e o convidarão a visitar suas casas, ao descobrirem de onde ele vem.
O viajante solitário, já cansado de estar só, perceberá que poderá encontrar alguém que conhece superficialmente lá de sua terra natal, mas que vive por ali, está por perto. Ficará surpreso com a qualidade da recepção, ele revela-se um bom amigo, e conhecerá seu filho, que se chama Bernardo e sua esposa, pois os viajantes solitários se reconhecem longe de casa.
Viajar só e eventualmente encontrar amigos desgarrados é tão importante quanto fazer novos amigos para essa categoria de viajante: os solitários. Os lugares por onde passa o deixarão mais perto de casa, o que não aconteceria se sua viagem não fosse só. O viajante solitário quer se autodescobrir, seu objetivo é ele mesmo, por isso despreza planos muito complexos e detalhados. Quanto mais simples e improvisado melhor será o reencontro ou a redescoberta.
Mas o viajante solitário registrará em seu diário um dia ou dois, um pôr-do-sol ou um luar, que deveriam ter sido compartilhados. Eram belos de mais para se contemplar só. Ah, a lua cheia sobre a baía não merece um só par de pegadas na areia da praia.
O viajante solitário, então, nunca se sentirá tão só e fará força para guardar os pormenores sutis e os mínimos detalhes do momento, mesmo sabendo que são os momentos mais estranhos, os de dor ou violência, que se alojam nos espaços estreitos da memória, sacudirá a areia seca que envolve a sua roupa e retomará o caminho ao pier, pois está certo que haverá outros momentos iguais àquele e que existe a possibilidade de viajantes solitários estarem no lugar certo e na hora certa e se encontrarem.
Por ora, decidirá o viajante solitário, é hora de voltar pra casa.
sexta-feira, 13 de março de 2009
Às 18.
A primeira vez na nova casa.
Para chegar até a cozinha tive que cruzar por uma nuvem de mosquitos. Eram tão numerosos que os sentia se chocarem contra a pele do rosto. Cerrei os lábios com o receio de engolir algum, mas decerto levaria um que outro comigo, preso aos cílios, aos cabelos e também levaria juntos aqueles que se embrenhavam nas orelhas, buscando o aconchego morno de meus ouvidos.
Enquanto procurava o disjuntor, sentia percorrer o corpo aquele prazer provocado pela sensação de vingança que viria a seguir, assim que eu encontrasse a maquininha de Flits, o veneno fedorento que derrubaria mais da metade deles e afugentaria os mais resistentes.
Só a enchente tão perto de casa poderia explicar a superpopulação de pernilongos e borrachudos. Claro, que algum incauto morador da velha e quase abandonada edícula contribuiu, deixando as janelas abertas bem ao crepúsculo.
Coloco a água para esquentar para um café preto com bolachas, mas abro o armário e vejo as bolachas mofadas. Contento-me com o café. Sobre a pia a louça está toda limpa, mas ainda sobre o escorredor. Por um breve instante decido secar com o pano de prato tudo o que se amontoa, mas desisto no momento que alcanço a colherinha de cabo preto; a medida certa de açúcar que adoça o meu café.
Mas a fome aperta; o café não vai enganar até o outro dia. Olho para a geladeira velha, azul, de tramela, que alguns pagariam uma fortuna para colocar atrás de um balcão de algum bar cult, mas que compramos no brique, pois foi o que permitiu o dinheiro. Nenhuma possibilidade e fecho a Frigidaire pela segunda vez em dez minutos. Na porta um bilhetinho de Celma onde leio o convite:
- Venha jantar uma horas dessas na casa nova.
Era do lado, há alguns passos de caminhada. Na época não havia celulares nem emails; fui direto, sem aviso.
Percorri um corredor entre a casa e um muro alto. Celma morava nos fundos, assim como eu, numa edícula sem banheiro e, diferente da minha, de um único cômodo.
Ela estava no lado de fora, sentada num mocho, tomando um mate, depois de um dia inteiro de trabalho numa escola de um rincão sem nome, perdido no pampa. O lusque-fusque me amoitou e ela só me percebeu, quando disse:
- Tem o que pra janta hoje?
Preparou a jantinha no fogão de duas bocas, de camping, improvisado sobre uma cômoda, entre um roupeiro e uma cama. Ela comeu em pé; deixou o mocho para a visita e ainda ofereceu uma sobremesa tirada de um livro de nossa mãe que encontrara na mudança. Depois disso as jantas ficaram mais freqüentes
Hoje, quase vinte anos depois, Celma ainda gosta de receber para os jantares, na sua casa de verdade, de vários cômodos, ajardinada de onde só sai, cruzando o caminho de dormentes até o portão de saída, para trabalhar e pagar as contas.
sábado, 7 de março de 2009
Enfim, é só saudade...
Resgatei um dia do meu robusto banco de horas, madruguei e numa manhã chuvosa de sexta-feira estava em Capão da Canoa. Que imenso prazer me deu absorver aquele cheiro de ar salobro e ver as ruas empossadas pela água da chuva, misturada à areia; as pessoas saltitando na ponta dos pés, tentando, inutilmente, não molhar os chinelos.
Dei uma passadinha na padaria para não chegar de mãos vazias na casa da prima Zulmira que àquela hora da manhã ainda devia estar dormindo. Encontrei fácil a casa de tijolos aparentes e nosso primeiro compromisso após o desjejum foi caminhar na praia, ali, há duas quadras, sob a mormaceira, e depois ir visitar a prima Glória Virginia, a qual só conhecia das histórias que ouvia de irmãs e primas e das caixas de biscoitos que chegavam três ou quatro vezes por ano lá em Alegrete, presentes seus, nos anos 80. Ao primeiro olhar me reconheceu, abraçou-me e fugiu para a cozinha a se esconder e chorar, evento que não mais me incomoda. As pessoas ligadas a minha mãe invariavelmente choram ao me ver “gordo e lindo” e não por que me associam a um plano trágico, como já pensei, mas porque ao me verem, sentem saudade da Sirlei que amavam.
Não comeria outra coisa naquela sexta-feira que não peixes e frutos do mar, então não ficamos para o almoço na casa de Glória, onde um feijão cheirava a manjerona lá na varanda, em frente à reserva das corujas.
Passamos em casa, antes do almoço e então, talvez, conhecesse a tia Rosa que, incrivelmente, as estas alturas, ainda não conhecia. Ela entrou baixinha e morena com o aquele sorriso de canto, o caminhar peculiar ladeado que marca quase todas as mulheres de nossa família. Logo me reconheceu e passou a perguntar dos meus. Com excessão das sobrinhas que me avizinham, foi a primeira pessoa em dias que demonstrou uma consternação genuína ao saber da morte recente de Vovó Nair. É que as tias, sempre sabem um pouquinho mais sobre nós do que se imagina. Sangue não é água, já ouvi dizer. Em nossas conversas falamos dos símbolos de nossa família; mais dos Carpes e Caminha, é bem verdade, do que dos Alves Viana, talvez porque a presença dos primeiros é ainda onipresente na vitalidade centenária de vó Nita, enquanto os Viana Alves se bandearam junto ao vô Cândido. Soube de vó Tereza e vô Fritz - tios-avós, na verdade - velhinhos e saudáveis e tive vontade de estar com eles e passei a considerar uma visita na capital.
O sábado amanheceu radiante de sol. Vladimir, parente por tabela, convida para uma caminhada pela praia até Atlântida; proposta irrecusável. Pela orla alcançamos o balneário elegante e cruzamos por muitos conterrâneos desgarrados. Na volta paramos na barraca dos alegretenses onde estive com Ana Regina Gorsky; lado a lado falamos de alegretenses, indiferentes as nossas distantes posições políticas naquele lugar tão democrático: a areia de Capão da Canoa.
Um sábado de sol e eu saí no lucro, pois já nem contava em aproveitar um dia radiante e luminoso; estar na praia já era suficientemente revigorante.
segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009
Um punhado de memórias.
As lembranças da cozinha são as mais insistentes, têm cheiro, sabor.
Enfim, segui casa adentro; com cuidado afastei a cortininha do quarto e a vi recostada sobre altos travesseiros, plácida, imóvel, os óculos deitados ao lado. Percorreu-me um frio pela espinha, vendo aquela quietude. Pareceu-me que o maior medo que habitava meus dias de guri havia por fim se apresentado, logo quando decidi retornar, recuperar as tardes perdidas, pensei que ela se debandara para outros cantos.
Cheguei perto e mais perto, com cuidado para não lançar ao chão os bibelôs de louça e vi que ela respirava.
De alívio, senti os músculos relaxarem e identifiquei-me em um sonho e como sonhos não atravessam as manhãs, lamentei.
“Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida. Nunca tive outra preocupação verdadeira senão a minha vida interior. Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser. E alinho na minha imaginação, confortavelmente, como quem no Inverno se aquece a uma lareira, figuras que habitam, e são constantes e vivas, na minha vida interior. Tenho um mundo de amigos dentro de mim, com vidas próprias, reais, definidas e imperfeitas. E quando penso isto, passeando pelo meu quarto, falando alto, gesticulando... quando sonho isto, e me visiono encontrando-os, todo eu me alegro, me realizo, me pulo, brilham-me os olhos, abro os braços e tenho uma felicidade enorme, real.”
domingo, 25 de janeiro de 2009
Sombra inefável.
Inteligente, erudito e com um ótimo senso de humor, Mario, ficou o tempo todo cercado de admiradores. É casado com uma porto-alegrense, Ana Luíza, esbelta, simpática em seus cabelos descoloridos como os de uma replicante de Ridley Scott. Moram em Porto Alegre já há alguns anos, mas a marca do pampa está representada em parte de sua obra.
Discorrendo sobre estas marcas gravadas em nossas almas fomos longe, galopeando o horizonte de nossa territorialidade comum, e avançamos até Morosoli, Paco Espínola e os Marios - Arregui e Benedetti. Para ele, ser de Alegrete, da fronteira, não é suficiente para conhecer os contistas uruguaios, então tive que puxar pela memória para descobrir a origem de minha familiaridade com as letras cisplatinas. Ana, formada em Letras, reiterou a posição do marido. Lembrei apenas de ter ouvido uma argentina chamada Nacha Guevara, cantando “Te quiero”, uma canção de Benedetti, apresentada a mim pela amiga Leila Almeida, que tem um pé no Uruguai e outro cá. Os outros vieram na carona e ancoraram de vez após a entrevista que fiz com Sergio Faraco, que traduziu boa parte daqueles autores.
Ainda sobre a vida do artista soube de sua educação francesa; perguntou-me parlez-vous francais? – Claro que não! Mas fui aluno de Martine Cotin e é isso com a França além de uma predileção pelo personagem Julien Sorel e pelos filmes de Luis Malle.
Por fim, depois de bebermos espumantes e cervejas, revelou-me que esculpira há pouco um busto do prefeito Pillar, que guardará como esfinge o Centro Administrativo que leva seu nome. Fui forçado a lembrar das palavras de Décio Freitas sobre o monumento a Julio de Castilhos na Praça da Matriz em Porto Alegre, para ele um corolário ao totalitarismo. Está certo que o monumento ao prefeito Pillar é apenas um busto, não tem a grandiosidade e suntuosidade positivista da homenagem a Castilhos, mas em nenhum momento deixei de lembrar da abominável sentença, atribuída a Comte, inscrita em sua base "os vivos são, sempre e cada vez mais, governados pelos mortos”.