Atravessava a alameda central do parque de exposições Dr. Lauro Dornelles em direção ao meu local de trabalho em certa feira de primavera. Parados, admirando o que julgavam ser o mais bonito estande do evento, dois senhores conversavam numa manhã de sol de outubro. Reconheci um deles e me aproximei. Franzindo o cenho e firmando os olhos não para enxergar melhor, mas para ativar a memória, Seu Jesus Franco, ou Jesus “Leiteiro” para os íntimos que povoam o Alegrete grande, admitiu, sem rodeios, que eu era familiar, mas que não me reconhecera. Eu só tinha uma resposta:
- Filho do João, tio do Pedro.
Não sei o motivo, mas em certa etapa da vida, os homens calejados pela aridez pampeana, tendem a reprimir a voz de choro e segurar as lágrimas quando alguma memória se alvoroça e seu Jesus, tendo diante si tal alvoroço, reteve-se e dispensou-me apenas um breve abraço, seguidos de tapas fortes, rítmicos e marcados, em minhas costas.
- Este é o filho de um grande amigo – disse ao companheiro de passeio.
Referia-se ao meu pai que além de amigos nutriam a mesma velha paixão pelo MDB. Além do velho João somente o Seu Jesus expressara mágoa em me ver enveredar por outros traçados políticos. Se o fez, é por que sabia que podia. Se já fora pai de tantos, porque não de mais alguns? Era da família.
Em outras ocasiões nos encontramos novamente, ali pelos bancos da Praça Getúlio Vargas, sempre pelas manhãs ensolaradas. Ele, como se treinasse diariamente para não deixar escapar a imagem de minha figura por entre as mechas grisalhas, já de longe se adiantava e dizia meu nome “Júnior!” sempre acompanhado de um aposto “irmão da Aninha”, “tio do Pedro!”. Num desses encontros surpreendi-o orgulhoso de participar de uma confraria de ex-militares egressos da cavalaria, a um amigo de prosa, e usava no peito uma pequena insígnia que o identificava como tal. Ao saber de minha passagem pela arma - que fora fuzileiro como ele - disparou que não havia outro jeito, tinha que ingressar na confraria. Na próxima reunião meu nome já estaria na lista; seria eu o primeiro a fazer parte na sociedade por indicação dele. Há tempos procurava uma pessoa, dizia e “...estava tão perto”. Quanta honra meu velho!
Na última vez que nos encontramos, em frente à Urcamp, ele estava a caminho do jantar e da reunião com seus confrades cavalarianos. Lamentei que não pudesse acompanhá-lo, pois tinha um compromisso de trabalho. Lamentei menos do que ele, percebi, talvez por que não tinha a sua mesma pressa, a sua mesma ansiedade. Declarava-me sem tempo, o tempo que na verdade o meu amigo já percebia lhe faltar.
Eram diferentes nossos relógios e só o tempo nos faz perceber a sua própria relatividade. Estou certo, no entanto, que Seu Jesus, “pelo – duro” assim como eu, reconhece que as melhores coisas que temos a dizer são como espinhos de traíra que teimam em se atravessar na garganta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário