domingo, 31 de maio de 2009

Sem pressa.

Para falar de minha avó centenária com propriedade, a vó Nita, deveria começar com a mesma doçura com que uma borboleta pousa numa flor. Não me acho capaz, no entanto. Ao fim de um reiterado esforço, após várias tentativas, concluí que nem digno o era, além de correr o risco de resvalar para pieguice. Ora, eu escrever apropriadamente, com minhas próprias palavras, a introdução sobre alguém que atravessou um século com tanta integridade e lucidez! E não se trata de um século qualquer; trata-se do nosso século XX, de luzes, mas também de trevas, e mais uma dezena de anos desse. Preciso de uma referência digna e para isso evoco Norberto Bobbio, quando falou sobre a velhice:
“Se o mundo do futuro se abre para a imaginação, mas não nos pertence mais, o mundo do passado é aquele no qual, recorrendo a nossas lembranças, podemos buscar refúgio dentro de nós mesmos, debruçar-nos sobre nós mesmos e nele reconstruir nossa identidade; um mundo que se formou e se revelou na série ininterrupta de nossos atos durante a vida, encadeados uns aos outros, um mundo que nos julgou, nos absolveu e nos condenou para depois, uma vez cumprido o percurso de nossa vida, tentarmos fazer um balanço final.”
Ao final desta citação o grande pensador italiano acrescentou que neste momento “é preciso apressar o passo”.
Não é o caso de vó Nita. Interveio a mão pesada do tempo nos seus cabelos brancos, nas rugas que redesenharam suas faces; mas o tempo não deixou traços na consciência e se os deixou não são visíveis ao nosso olhar. Poucas pessoas são tão lúcidas como minha avó. Não sei, e não por teimosia, mas parece que ela ignora alguns fundamentos do tempo e não atribuam a minha avó aquela máxima do velho com alma de jovem, pois decerto, não há nenhum problema com a alma dos velhos. Refiro-me ao tempo real, o do terreno da física. É este tempo que ela parece engambelar.
É preciso ter claro que “o tempo da memória segue um caminho inverso ao do tempo real: quanto mais vivas as lembranças que vêm à tona de nossas recordações, mais remoto é o tempo em que os fatos ocorreram”. De novo, Bobbio. Assim, sua memória saudável deve tornar vivas uma infinidade de lembranças, que ela revive a cada amanhecer, o amanhecer que pode ser qualquer um num intervalo de 100 anos. São, então, milhares de amanheceres, incontáveis chegadas e partidas; inúmeros verões, invernos; flores vermelhas, folhas amarelas; inventores, gênios, descobertas, algumas guerras, momentos de paz, de grades, de liberdades, de revoluções, de movimentos, de heróis, e, enfim, de tardes e noites.
Não é possível aos jovens compreender um tamanho testemunho.
Quantas vidas descendem de seu ventre? Quantos feitos poderiam lhe ser atribuídos? Ahh! ...o que faz o vinho e algumas latas de sardinha a um sangue lusitano! Quantas identidades foram forjadas pelos seus genes?
Espero lhe ter herdado uns quantos, pois a cada um somado melhor será o meu caráter. Todavia não herdei o gene colorado e devo dizer que este não lamento. Sou gremista: paixão que herdei de seu genro e só isso já seria suficiente para supor que ela compreende. Mas ainda há a paixão, aquela latina, ibérica, e de paixão certamente vó Nita entende, pois senão entendesse, não teria vencido os 100 anos.

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