Para chegar até a cozinha tive que cruzar por uma nuvem de mosquitos. Eram tão numerosos que os sentia se chocarem contra a pele do rosto. Cerrei os lábios com o receio de engolir algum, mas decerto levaria um que outro comigo, preso aos cílios, aos cabelos e também levaria juntos aqueles que se embrenhavam nas orelhas, buscando o aconchego morno de meus ouvidos.
Enquanto procurava o disjuntor, sentia percorrer o corpo aquele prazer provocado pela sensação de vingança que viria a seguir, assim que eu encontrasse a maquininha de Flits, o veneno fedorento que derrubaria mais da metade deles e afugentaria os mais resistentes.
Só a enchente tão perto de casa poderia explicar a superpopulação de pernilongos e borrachudos. Claro, que algum incauto morador da velha e quase abandonada edícula contribuiu, deixando as janelas abertas bem ao crepúsculo.
Coloco a água para esquentar para um café preto com bolachas, mas abro o armário e vejo as bolachas mofadas. Contento-me com o café. Sobre a pia a louça está toda limpa, mas ainda sobre o escorredor. Por um breve instante decido secar com o pano de prato tudo o que se amontoa, mas desisto no momento que alcanço a colherinha de cabo preto; a medida certa de açúcar que adoça o meu café.
Mas a fome aperta; o café não vai enganar até o outro dia. Olho para a geladeira velha, azul, de tramela, que alguns pagariam uma fortuna para colocar atrás de um balcão de algum bar cult, mas que compramos no brique, pois foi o que permitiu o dinheiro. Nenhuma possibilidade e fecho a Frigidaire pela segunda vez em dez minutos. Na porta um bilhetinho de Celma onde leio o convite:
- Venha jantar uma horas dessas na casa nova.
Era do lado, há alguns passos de caminhada. Na época não havia celulares nem emails; fui direto, sem aviso.
Percorri um corredor entre a casa e um muro alto. Celma morava nos fundos, assim como eu, numa edícula sem banheiro e, diferente da minha, de um único cômodo.
Ela estava no lado de fora, sentada num mocho, tomando um mate, depois de um dia inteiro de trabalho numa escola de um rincão sem nome, perdido no pampa. O lusque-fusque me amoitou e ela só me percebeu, quando disse:
- Tem o que pra janta hoje?
Preparou a jantinha no fogão de duas bocas, de camping, improvisado sobre uma cômoda, entre um roupeiro e uma cama. Ela comeu em pé; deixou o mocho para a visita e ainda ofereceu uma sobremesa tirada de um livro de nossa mãe que encontrara na mudança. Depois disso as jantas ficaram mais freqüentes
Hoje, quase vinte anos depois, Celma ainda gosta de receber para os jantares, na sua casa de verdade, de vários cômodos, ajardinada de onde só sai, cruzando o caminho de dormentes até o portão de saída, para trabalhar e pagar as contas.
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