quinta-feira, 16 de abril de 2009

Nossos pais e nossos cães.

“Em verdade, é estranho não mais habitar a terra, não praticar mais os costumes recém-aprendidos, não mais conferir às rosas, nem a outras coisas promissoras, a significação de um futuro humano...”
Rilke

Havia muito barulho nas redondezas e muitas coisas a fazer. Curso de inglês on-line, responder a e-mails. Uma manhã de sexta acelerada. Incomum para uma sexta – casual day de um desempregado. Senti o cheiro de fresias, flores que cheiram a chá. Profusão do incenso que queimava sobre a estante de livros. Imaginei-as brancas, frescas e perfeitas - as fresias. Na tela do laptop piscava a barra laranja do messenger.
Entendi o piscar incessante; a pessoa do outro lado dizia “Seu Osório faleceu”. Imaginei-o à calçada da Joaquim Antônio, cuia do mate em uma das mãos, cachorros à volta; dois labradores; um coquer, um vira-lata. Aquela sexta denunciava que o nosso inverno estava de dias contados; não esse inverno, todos os invernos, o inverno como estação. Seu Osório estaria feliz, pois como todo o trabalhador rural, gerente de lavouras de arroz, o frio não lhe trazia boas lembranças, toda aquele barro, toda aquela água e mais a geada; por isso somente era possível vê-lo à calçada ao fim das tardes amenas. Do contrário, estaria dando um jeito de fazer um fogo na lareira ou num chão, galpão qualquer que tivesse lenha. Coisas simples de um homem simples, cujo maior desejo em vida era ver os filhos formados ou encaminhados; o que ele viu.
A morte sempre é triste, não acredito em boa morte. Mas se há o mais próximo disso – da boa morte – há de ser o mínimo sofrimento físico e a felicidade na alma. Meu pai, disseram os médicos, morreu antes de cair ao chão, tal a força do enfarte. Morreu ao lado de um cão fujão, dos netos. Não sofreu, mas duvido que tenha morrido feliz. Seu Osório sofreu dores e desconforto, mas feneceu depois de uma longa vida de 75 anos dedicada a um projeto que viu cumprido. Morreu feliz, certamente.Ele não escreveu nenhum livro, mas tinha pauta para vários. Era um contador de histórias daqueles que só a aridez do pampa produz; expoente da mestiçagem ibérica e pelo – duro. Lembrava de todos os personagens e de suas inter-relações, de modo a deixar cair de inveja letrados quaisquer. Mais do que isso, sabia todos os nomes e a forma como os apresentava, não deixava dúvida sobre o caráter dos quais discorria. Talento cada vez mais raro esse, que contraria a tese de que os velhos não têm boa memória.
Se quiséssemos representar o homem alegretense como Paixão Cortes para o Laçador, seu Osório seria um bom candidato. Foi peão, gerente e dono de lavoura de arroz. Casou-se e teve filhos. Foi vereador do velho MDB durante os anos de chumbo. Tinha no falar, no andar, na alma a estirpe do gaúcho e chegou a experimentar a sensação ímpar de ouvir que ia ser avô.
Há pessoas que não morrem, fenecem, pois o seu legado está em todos os lados para testemunho e inspiração.

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