Por fim, depois de muito retorcer os pensamentos, percebi que não me queriam por perto. Mas sei que cada opinião vacilava sobre minha permanência ou partida ao sabor da luz dos dias e da direção do vento, mas ao final, na soma dos dias, era isto que queriam, me ver a sesmarias distante. Fui-me.
Ao voltar pude ver a casa absolutamente só, quieta, apesar do dia luminoso que fazia mais desbotado o verdinho das paredes.
O cão não correu ao meu encontro, não pulou, não me lambeu nem ao menos abanou o rabo. Entrei e o silêncio empertigado manteve-se sonoramente.
Olhei pela janela, aquela luminosidade que ofusca os seus próprios raios, já não exultava em seu intento de me cegar. Na rua me olhavam como se nunca saíra dali, como se nunca tivesse dobrado a esquina dos Ipês amarelos, como se nunca tivesse cruzado os trilhos. Recostei-me por breve instante, mas não desfiz malas nem mochilas. Não entreguei presentes nem encomendas.
Se nem o cão não abana o rabo é por que não vacilam mais, é por que não há mais nenhuma fagulha da sombra que jazia por vezes sob a copa de um cinamomo ou perambulava ligeiro pelos corredores à noite.
domingo, 21 de dezembro de 2008
Woody Allen ou Almodóvar?
Saí há pouco do cinema. Vi o último do Woody Allen "Vicky, Cristina Barcelona". Está bem; estavam lá Javier Barden, Penelope Cruz, Barcelona, Miró, mas não só por isso pensei ter saído da sessão de um filme de Almodóvar. Mesmo assim, gostei.
Surpresa no sacolão.
Dois garotinhos, irmãos gêmeos, com 3 ou no máximo 4 anos estão no "sacolão" com o pai. Os dois ganham cada qual um saco de salgadinhos Elma Chips. Um deles abre logo o seu e sem rodeios demonstra todo o seu contentamento, dizendo:
-Ôoo vida boa!
Todos riem com a espontaneidade do piá, até a italianinha que não mostra os dentes enquanto houver homem no caixa. O outro gêmeo, conserva o seu saco fechado e mostrando uma certa perplexidade diz ao pai:
- Pai, tem que pagar! - ignorando que o velho remeche na carteira a procura da nota certa.
- Pai, a gente não vai pagar? - e o pai paga, eles saem e o guri segue dizendo:
- Pai, tem que pagar!
Dois gêmeos. Duas personalidades já tão difusas em tenra infãncia.
-Ôoo vida boa!
Todos riem com a espontaneidade do piá, até a italianinha que não mostra os dentes enquanto houver homem no caixa. O outro gêmeo, conserva o seu saco fechado e mostrando uma certa perplexidade diz ao pai:
- Pai, tem que pagar! - ignorando que o velho remeche na carteira a procura da nota certa.
- Pai, a gente não vai pagar? - e o pai paga, eles saem e o guri segue dizendo:
- Pai, tem que pagar!
Dois gêmeos. Duas personalidades já tão difusas em tenra infãncia.
O que fica para trás.
Totó era o nome do personagem principal do filme Cinema Paradiso. O menino italiano, apaixonado por cinema, que largou a vida difícil na Sicilia para se transformar em um laureado cineasta em Roma. O personagem virou um arquétipo de todos os cinéfilos, particularmente daqueles que vislumbravam para si um destino idêntico.
O franzino Totó inicia a jornada pentelhando Alfredo, o responsável pela projeção das fitas exibidas na sala de cinema da pequena Giancaldo. Curioso era descobrir que a sala pertencia à Igreja. O Padre era uma figura formidável, engraçado, ele assistia a todos os filmes ante, sozinho na imensidão do cinema vazio, e cortava todas as cenas eróticas, pecaminosas, mesmo que o pecado fosse um inocente beijo ou levantar de saias.
Ele e Totó protagonizaram uma das cenas mais comoventes do filme e talvez do cinema.
Totó depois de substituir Alfredo, ainda guri, na cabine de projeção, deixa a cidade para prestar o Serviço Militar e retorna adulto. Não encontra mais seu grande amor Stela e tampouco perspectivas na cidade e decide deixá-la motivado por Alfredo, seu grande amigo e confidente. “Vá e não volte!” diz Alfredo, cego e melancólico, interpretado pelo charmoso Philip Noiret. “Esta é uma terra má” – referia-se a Sicilia. "quando se vive aqui, pensamos viver no centro do mundo, mas ao retornar depois de muitos anos, percebe-se que nada mudou". Diante de tal eloquência não resta alternativa.
Na estação, todos os amigos estão junto a Totó que espera o trem para Roma. O padre chega atrasado e encontra ele já embarcado no vagão que se afasta, em slowmotion enquanto o velho religioso em sua batina preta lamenta "Que pecatto!" por não ter se despedido do amigo.
As despedidas são tristes, mas também são uma forma de demonstrar a importância que os que se separam representam um para o outro. Estranhamente, mesmo que haja a expectativa de um reencontro em breve, o ritual tem uma simbologia que foge do efêmero, parece consolidar a intenção de se perpetuar a amizade, o respeito mútuo. De marcar com um selo que as experiências vividas juntas vão ficar na memória e vão preservar os motivos que justificariam o reencontro.
No último fim de semana fui a Alegrete para o casamento de um bom amigo e pensei em aproveitar a ocasião para me despedir de um outro. Com o casamento deu tudo certo, foi uma grande festa, um reencontro com tantos queridos desgarrados, mas não deu certo com a despedida. Não houve o reencontro, talvez, por uma série desafortunada de pequenos desencontros, de números de telefones que não existem mais ou que estão com outras pessoas, a agenda que se perdeu, alguém que não deu o recado ou simplesmente, por uma vontade deliberada de não reencontrar para não se despedir.
A ocasião da despedida talvez seja uma das mais simbólicas representações da humanidade. O adeus está presente desde a festa na empresa para o colega que sai transferido até o funeral que nos leva para sempre um ente-querido. Confesso que fiquei um pouco incomodado, por não ter me despedido, deste amigo em questão, mas deles, dos que não se despedem, não posso falar, pois eu mesmo, que digo preservar as despedidas, por diversas vezes deixei para trás lugares e pessoas no meio da madrugada.
O franzino Totó inicia a jornada pentelhando Alfredo, o responsável pela projeção das fitas exibidas na sala de cinema da pequena Giancaldo. Curioso era descobrir que a sala pertencia à Igreja. O Padre era uma figura formidável, engraçado, ele assistia a todos os filmes ante, sozinho na imensidão do cinema vazio, e cortava todas as cenas eróticas, pecaminosas, mesmo que o pecado fosse um inocente beijo ou levantar de saias.
Ele e Totó protagonizaram uma das cenas mais comoventes do filme e talvez do cinema.
Totó depois de substituir Alfredo, ainda guri, na cabine de projeção, deixa a cidade para prestar o Serviço Militar e retorna adulto. Não encontra mais seu grande amor Stela e tampouco perspectivas na cidade e decide deixá-la motivado por Alfredo, seu grande amigo e confidente. “Vá e não volte!” diz Alfredo, cego e melancólico, interpretado pelo charmoso Philip Noiret. “Esta é uma terra má” – referia-se a Sicilia. "quando se vive aqui, pensamos viver no centro do mundo, mas ao retornar depois de muitos anos, percebe-se que nada mudou". Diante de tal eloquência não resta alternativa.
Na estação, todos os amigos estão junto a Totó que espera o trem para Roma. O padre chega atrasado e encontra ele já embarcado no vagão que se afasta, em slowmotion enquanto o velho religioso em sua batina preta lamenta "Que pecatto!" por não ter se despedido do amigo.
As despedidas são tristes, mas também são uma forma de demonstrar a importância que os que se separam representam um para o outro. Estranhamente, mesmo que haja a expectativa de um reencontro em breve, o ritual tem uma simbologia que foge do efêmero, parece consolidar a intenção de se perpetuar a amizade, o respeito mútuo. De marcar com um selo que as experiências vividas juntas vão ficar na memória e vão preservar os motivos que justificariam o reencontro.
No último fim de semana fui a Alegrete para o casamento de um bom amigo e pensei em aproveitar a ocasião para me despedir de um outro. Com o casamento deu tudo certo, foi uma grande festa, um reencontro com tantos queridos desgarrados, mas não deu certo com a despedida. Não houve o reencontro, talvez, por uma série desafortunada de pequenos desencontros, de números de telefones que não existem mais ou que estão com outras pessoas, a agenda que se perdeu, alguém que não deu o recado ou simplesmente, por uma vontade deliberada de não reencontrar para não se despedir.
A ocasião da despedida talvez seja uma das mais simbólicas representações da humanidade. O adeus está presente desde a festa na empresa para o colega que sai transferido até o funeral que nos leva para sempre um ente-querido. Confesso que fiquei um pouco incomodado, por não ter me despedido, deste amigo em questão, mas deles, dos que não se despedem, não posso falar, pois eu mesmo, que digo preservar as despedidas, por diversas vezes deixei para trás lugares e pessoas no meio da madrugada.
terça-feira, 30 de setembro de 2008
quarta-feira, 17 de setembro de 2008
O último a sair.

NARRADOR: Jader silenciou por que sabia que o barman estava certo. Não há como anular tudo de uma só vez. Não é possível extirpar um sentimento até a raiz. Há sempre uma fagulha, uma lufada de vento e tudo volta. Não se anula a pessoa amada sem sentir-se, também, anulado sob o amor. A imagem de vê-la só, abandonada a sua sorte, excluída do sentimento que antes suscitara promovia uma culpa pungente em Jader e logo ele se auto-reprovaria em abandoná-la. Este era o maior temor de Jader, que o vazio do quarto despertasse o seu vazio pessoal. Uma reviravolta e, pronto, para desanulá-la ele se obrigaria a sofrer novamente.
- JADER: Então, como é que fica?
BARMAN: Fica na mesma, deu empate.
- Me refiro ao campeonato. Me sirva a última taça.
- Não sei. Não vi a tabela. Sauvignon?
- (ele ri) Tanto faz.
- Não vai querer te embriagar hoje?
- Não é que eu não queira. Sabe como é, não devo.
- Ué! E onde estava todo aquele controle?
- Mas isso é controle, auto-controle. Se bebo, posso perde-lo rapidamente. - - Então vou beber este cálice e vou embora. Minha cama me espera quentinha....
- E vazia.....
- Mas tchê, tu é meu amigo ou amigo da onça?
- Quer saber mesmo? De nenhum, sou apenas o barman.
- E o barman não tem amigos?
- Tem. Claro que tem. Mas não é aqui que me encontro com eles.
- Te entendo. O balcão é a privada dos desesperados. Mas não é o meu caso.
- Não foi eu quem disse.
- Tá bem, mas acho que tu é bom amigo, ou ao menos seria.
- Obrigado!
- Não agradeça. É sincero. Me dá a conta. A rua está deserta. O bar está vazio.
- Veja só, o senhor é sempre o último a sair.
- É mesmo? Não tinha reparado nisso?
- Mas é só olhar em volta e não se incomode, o senhor é sempre bem-vindo. (Jader se despede e sai)
Trecho de uma cena da peça "O último a sair". EU, brincando de dramaturgo. Em breve, no Teatro Mensageiros.
Em tempos de crise o remédio é Keynes.
Para estarrecer os tradicionalistas alegretenses.
De passagem por Caxias do Sul, visitei o acampamento farroupilha, versão Porco Dio, que acontece nos pavilhões da Festa da Uva. Apregoa-se não só por lá, mas aos quatro ventos e na tevê, que Caxias, sim, é a Capital do tradicionalismo. Gostou? Tem mais: eles afirmam contar com 81 Ctgs.
Achei que os 13 de Alegrete já eram um número audacioso e além do razoável.
Achei que os 13 de Alegrete já eram um número audacioso e além do razoável.
Uma semana ruim na vida de Guri.
Guri gostava de ser guri e ser assim chamado. Era melhor do que Chico. Há 12 anos e 10 meses atendendo pela alcunha, já lhe garantia o direito de se diferençar dos outros guris. Ademais, só lembrava do nome Francisco, quando chegava a caixa de papelão, repleta de biscoitos, mandada pela madrinha de Porto Alegre. "Para o meu querido Francisco" lia na tampa da caixa. Pegava um pacote de suas preferidas, as bolachas champanhe, e deixava o resto para irmã, a pobre, aquelas alturas já enjoada do almoço de semanas a base de jacuba e leite em pó quase implorado as beatas da Paróquia. Ele se ajeitava pelos cantos da vila, ajudando a descarregar um caminhão de tijolos, carpindo, de mandalete. Às vezes torcia o pescoço de uma galinha pras putas da casa amarela que se apavoravam com a ave estrebuchando pelo chão, mas ardiam em fogo lento sob os barrigões sujos dos caminhoneiros do Postão. Este era o seu melhor biscate. Sempre lhe rendia a coxa da galinha e mais alguns trocados que se convertiam em sanduíche de mortadela e guaraná Sielva no bolicho do Dirceu.
Há uma semana não ia ao colégio. O pai sumido há um mês, não apareceu na reunião de entrega das notas. Sem o bilhete assinado por um responsável não podia entrar na aula. A velha Ema ele não podia pedir, ela já o representara na homenagem do dia das mães. O remédio, então, era se esconder. Juntava a Maria Callas, a cadela que ao ouvir ópera começava a uivar, e seguia pelos matos costeando o rio, por toda a manhã.
Da última vez, voltando pra vila, teve que cruzar a ponte e as coisas não foram bem. Três homens que passavam jogaram a cadela sobre o vão. Tivesse ela caído na água, estaria bem; era boa de nado a Maria Callas. Mas não, ela caiu sobre as pedras. Guri nem se deu ao trabalho de descer, quando viu o sangue vertendo pela boca do animal e aceitou a carona de um carroceiro que viu com os próprios olhos "até onde vai a crueldade do ser humano".
Ele incorporou uma feição insubordinada e só apareceu pelas casas perto das 4 horas. Antes, decidido a recuperar as aulas cabuladas, passou na Flavinha pra pedir o caderno emprestado. O pai dela nem deixou ele cruzar o portão; mentiu que a guria estava pra cidade com a mãe. Guri tomou seu rumo, cruzou o campo e, varado de sede, passou pela casa da vizinha onde deixava uns potes de margarina vazios para formar gelo pra por no ki-suco. Dela ele escutou "Não tem gelo" e reconheceu os potes jogados numa valeta servida pela água do tanque de lavar roupa.
Contornou o campinho, pulou o muro e entrou em casa. A irmã chorava, encolhida no sofá. Em pé, Dona Valentina e seu Pedro, os velhinhos da casa de pedra, o aguardavam. O velho, segurando um trançado de oito disse: "Corri os covardes a relhaço, meu filho".
Guri virou-se calado e saiu. Em pouco tempo estava sobre a ponte onde perdera a Maria Callas. Jogou-se no rio. Não deixou carta, nem bilhete, não sentia tristeza, mas quis morrer. E assim - mesmo sabendo que podia - não lutava com a correnteza, se afogaria logo, até que viu um bote de madeira largado nas pedras. Deu uma dúzia de braçadas e alcançou o manso do rio. Mais meia-dúzia e já lhe dava pé. Caminhou até a margem, arrastou o bote até a água e, dentro dele, remando, sumiu na curva do rio a direita e nunca mais retornou.
Há uma semana não ia ao colégio. O pai sumido há um mês, não apareceu na reunião de entrega das notas. Sem o bilhete assinado por um responsável não podia entrar na aula. A velha Ema ele não podia pedir, ela já o representara na homenagem do dia das mães. O remédio, então, era se esconder. Juntava a Maria Callas, a cadela que ao ouvir ópera começava a uivar, e seguia pelos matos costeando o rio, por toda a manhã.
Da última vez, voltando pra vila, teve que cruzar a ponte e as coisas não foram bem. Três homens que passavam jogaram a cadela sobre o vão. Tivesse ela caído na água, estaria bem; era boa de nado a Maria Callas. Mas não, ela caiu sobre as pedras. Guri nem se deu ao trabalho de descer, quando viu o sangue vertendo pela boca do animal e aceitou a carona de um carroceiro que viu com os próprios olhos "até onde vai a crueldade do ser humano".
Ele incorporou uma feição insubordinada e só apareceu pelas casas perto das 4 horas. Antes, decidido a recuperar as aulas cabuladas, passou na Flavinha pra pedir o caderno emprestado. O pai dela nem deixou ele cruzar o portão; mentiu que a guria estava pra cidade com a mãe. Guri tomou seu rumo, cruzou o campo e, varado de sede, passou pela casa da vizinha onde deixava uns potes de margarina vazios para formar gelo pra por no ki-suco. Dela ele escutou "Não tem gelo" e reconheceu os potes jogados numa valeta servida pela água do tanque de lavar roupa.
Contornou o campinho, pulou o muro e entrou em casa. A irmã chorava, encolhida no sofá. Em pé, Dona Valentina e seu Pedro, os velhinhos da casa de pedra, o aguardavam. O velho, segurando um trançado de oito disse: "Corri os covardes a relhaço, meu filho".
Guri virou-se calado e saiu. Em pouco tempo estava sobre a ponte onde perdera a Maria Callas. Jogou-se no rio. Não deixou carta, nem bilhete, não sentia tristeza, mas quis morrer. E assim - mesmo sabendo que podia - não lutava com a correnteza, se afogaria logo, até que viu um bote de madeira largado nas pedras. Deu uma dúzia de braçadas e alcançou o manso do rio. Mais meia-dúzia e já lhe dava pé. Caminhou até a margem, arrastou o bote até a água e, dentro dele, remando, sumiu na curva do rio a direita e nunca mais retornou.
Uma noche mas.
A casa ficava na base de uma coxilha num terreno bastante arborizado. Já caía a noite a as pessoas chegavam umas sós, outras em grupo e entravam pela porta da frente. Não se sentia frio nem calor. As luzes de velas e lampiões bruxuleavam no interior da habitação - podia ver pela janela - acusavam que não havia luz elétrica no local.
Entrei. O caixão estava bem no centro da sala sobre um tapete estampado. Apenas uma coroa de flores ornamentava a cerimônia e duas lâmpadas incandescentes substituíam as tradicionais velas. Será um sonho? Afinal, só em sonho seria possível acender lâmpadas em uma casa sem energia elétrica.
Conhecia muitos entre os que prestigiavam o velório, quase a totalidade, na verdade; eram amigos ou conhecidos, e a primeira com quem tentei conversar era a senhora que servia o café com biscoitos; sabia que a conhecia, mas não me recordava o nome. Perguntei-lhe quem eram os parentes do morto, mas ela não me deu ouvidos. Seguiu servindo café às pessoas sentadas em cadeiras de PVC branca, em duas fileiras que ladeavam o caixão. Logo reconheci a moça loura da Rodoviária que se disse triste por ter rompido com o namorado há poucos dias e também o barman do St. Patrick Irisch Pub que cursava música na Universidade e trabalhava à noite para complementar a mesada que recebia dos pais.
Ouvi uma mulher falar que não gostava de velórios, mas que não podia ter deixado de vir àquele; tinha motivos fortes para tanto. Ela não revelou o motivo, mas devia ser mesmo forte, pois ela demonstrava um sofrimento aparente. Sempre fico perplexo ao ouvir a frase "não gosto de velórios", pois não considero crível que alguém goste de velórios, além do papa-defuntos é claro, mas estranhamente, naquele caso, tive uma outra compreensão da sentença.
O padre chegou, mas tive dúvidas se era realmente um padre, pois ele me pareceu ser um amigo carioca que nas horas de folga atua no teatro. De repente, meus dois amigos Tuio e Guilherme apareceram, pegaram violões e começaram a cantar "Las horas fueram pasando lentamente, y aquel momento sin igual , que vivirá eternamente, no se irá en mi alma siempre estará". Era "Uma noche mas", uma de minhas canções preferidas e por isso me senti fortemente impelido por uma inquietação, uma vontade ansiosa de ver quem ocupava o caixão no centro da sala, que logo foi aplacada pela visão de meu próprio corpo acomodado sobre o cetim roxo.
Outra canção não poderia ser mais apropriada, pois apesar de estar em paz, senti o quanto importante seria uma noite a mais.
Três torrones por um real.
O ônibus parou bruscamente. O motorista saiu de sua cabine e aos gritos, para que todos ouvissem, disse:
- O ar-condicionado estragou. As janelas são lacradas, por isso vou ter que abrir as tampas no teto.
Fez o que anunciara rapidamente e pôs de novo o ônibus a rodar. Eu não estava ainda inteiramente despertado e a modorra quente me incomodava. Para piorar as coisas, um brigadiano fardado e armado acomodara seu corpo na poltrona ao meu lado. Com o movimento do ônibus um vento quente e seco invadiu o carro, trazendo o cheiro de carniça de algum animal morto no asfalto, misturado ao odor fúnebre das flores de Maria-mole que lá fora vergavam ao sabor do vento norte. Amaldiçoei aquela terra, talvez, pela milésima vez em minha vida. Tentava me acomodar, mas o revólver que o soldado trazia no coldre incomodava pressionado contra o meu quadril. Retomei a posição antiga, mas antes olhei para o rosto do policial para ver quem dividia comigo aquele espaço exíguo, que nos fazia tão íntimos. Era um rapaz jovem de uns 25 anos, louro, ombros largos e com uma aparência amistosa. Diria-o bonito não fosse a alvura da pele. Fechei os olhos para fingir que dormia, pois me apavorava a possibilidade de ter que percorrer os 200km que me separavam do meu destino tagarelando com um desconhecido.
Permaneci com os olhos fechados por vários minutos, mesmo tendo a janela para contemplar a paisagem. O certo era que não queria contemplar aquela aridez varrida pelo vento que jogava mil grãos de terra vermelha contra o vidro. Quase não se via nada naquela extensão interminável, sinuosa, que vez por outra era desenhada por um bosque solitário de eucaliptos ou por uma formação rochosa que aflorava no solo ou nas encostas das coxilhas. Abri os olhos e vi um peão e seu cavalo cruzando o campo, roupas revoltas no vento, o chapéu levado à mão junto a um rebenque preso ao punho, balançava num aceno aos estranhos que cruzavam seus domínios. Gentil e triste resignação! O soldado brigadiano conversava animado com o passageiro do outro lado do corredor e como o assunto não haveria de me interessar, voltei a fechar os olhos e só os abriria na próxima parada.
Chegamos à rodoviária de uma pequena cidade situada às margens de um rio assoreado. Mal o ônibus parou, dezenas de pessoas cercaram o veículo. Planejava descer para comprar uma garrafa de água, mas desisti diante da agitação que tomou conta dos passageiros dentro do carro. Todos tinham pressa para descer, comprar alguma guloseima e retomar novamente seus lugares. Surpreendeu-me a gentileza do jovem brigadiano que se ofereceu para trazer algo que quisesse da lanchonete. Dei-lhe uns trocados e pedi que me trouxesse água, em parte agradecido por não ter que sair de minha poltrona, em parte receoso por ter que retribuir a gentileza ao menos lhe dando atenção para uma conversa.
Por alguns instantes o silêncio tomou conta do carro. Toda a agitação estava lá fora, na gare da estação rodoviária, até que uma voz aguda de menino quebrou o marasmo anunciando:
- Torrones, torrones! Três torrones por um real.
Involuntariamente fui levado a um breve sorriso e à vontade de comprar os torrones castelhanos que alegraram a minha infância. De repente, a multidão de passageiros começou a invadir o local. Três que passaram perguntaram-me se o acento estava ocupado e vendo suas aparências, agradeci por ter a companhia do asseado soldado. Queria comprar os torrones, mas à medida que as pessoas entravam via minhas chances diminuírem rapidamente. Num ímpeto gritei "Eu quero, aqui, eu quero!", acenando com uma nota na mão. O guri alcançou-me o pacote com os torrones e só então eu percebi que alguns me olhavam com estranheza, enquanto o soldado, já bem próximo, sorria como se achasse graça de um desajeitado.
- Sua água – disse ele, alcançando-me uma garrafa gelada – Não sabia se era com ou sem gás; trouxe sem gás.
- Está ótimo – respondi. Depois de agradecer a gentileza, lhe ofereci um torrone. Ele aceitou, dizendo que comeria depois, pois sentiria mais sede se comesse imediatamente.
O restante da viagem foi rápido e tranqüilo. A conversa com o soldado mostrou-se agradável. Seu destino era o mesmo meu. Soube que ele cursava o último ano de administração de empresas e se preparava para um concurso federal que o possibilitaria a sair da Brigada Militar. Se fosse bem colocado no concurso poderia escolher a colocação e certamente seria bem longe dali, revelou.
- Não que não goste da cidade – disse e filosofou – É que a cidade não dá oportunidades e sem oportunidades não há esperança.
De repente, lembrei da expressão "terra má" e sem identificar o motivo, esqueci-a ao ver que o ônibus estacionava na rodoviária de minha cidade natal. Preparei-me para descer, seguindo pelo corredor e detido pela lentidão do andar dos passageiros, aproveitei para me despedir do rapaz. Todos se agitavam tentando arrancar mais rapidamente as malas do bagageiro. Enquanto aguardava a minha bagagem na gare revi o soldado que se afastava alto e esguio. Percebi seus ombros largos e julguei-o mais belo do que antes seguindo pela calçada margeada de Ipês carregados de flores amarelas. Por um instante, lamentei não ter perguntado seu nome.
- O ar-condicionado estragou. As janelas são lacradas, por isso vou ter que abrir as tampas no teto.
Fez o que anunciara rapidamente e pôs de novo o ônibus a rodar. Eu não estava ainda inteiramente despertado e a modorra quente me incomodava. Para piorar as coisas, um brigadiano fardado e armado acomodara seu corpo na poltrona ao meu lado. Com o movimento do ônibus um vento quente e seco invadiu o carro, trazendo o cheiro de carniça de algum animal morto no asfalto, misturado ao odor fúnebre das flores de Maria-mole que lá fora vergavam ao sabor do vento norte. Amaldiçoei aquela terra, talvez, pela milésima vez em minha vida. Tentava me acomodar, mas o revólver que o soldado trazia no coldre incomodava pressionado contra o meu quadril. Retomei a posição antiga, mas antes olhei para o rosto do policial para ver quem dividia comigo aquele espaço exíguo, que nos fazia tão íntimos. Era um rapaz jovem de uns 25 anos, louro, ombros largos e com uma aparência amistosa. Diria-o bonito não fosse a alvura da pele. Fechei os olhos para fingir que dormia, pois me apavorava a possibilidade de ter que percorrer os 200km que me separavam do meu destino tagarelando com um desconhecido.
Permaneci com os olhos fechados por vários minutos, mesmo tendo a janela para contemplar a paisagem. O certo era que não queria contemplar aquela aridez varrida pelo vento que jogava mil grãos de terra vermelha contra o vidro. Quase não se via nada naquela extensão interminável, sinuosa, que vez por outra era desenhada por um bosque solitário de eucaliptos ou por uma formação rochosa que aflorava no solo ou nas encostas das coxilhas. Abri os olhos e vi um peão e seu cavalo cruzando o campo, roupas revoltas no vento, o chapéu levado à mão junto a um rebenque preso ao punho, balançava num aceno aos estranhos que cruzavam seus domínios. Gentil e triste resignação! O soldado brigadiano conversava animado com o passageiro do outro lado do corredor e como o assunto não haveria de me interessar, voltei a fechar os olhos e só os abriria na próxima parada.
Chegamos à rodoviária de uma pequena cidade situada às margens de um rio assoreado. Mal o ônibus parou, dezenas de pessoas cercaram o veículo. Planejava descer para comprar uma garrafa de água, mas desisti diante da agitação que tomou conta dos passageiros dentro do carro. Todos tinham pressa para descer, comprar alguma guloseima e retomar novamente seus lugares. Surpreendeu-me a gentileza do jovem brigadiano que se ofereceu para trazer algo que quisesse da lanchonete. Dei-lhe uns trocados e pedi que me trouxesse água, em parte agradecido por não ter que sair de minha poltrona, em parte receoso por ter que retribuir a gentileza ao menos lhe dando atenção para uma conversa.
Por alguns instantes o silêncio tomou conta do carro. Toda a agitação estava lá fora, na gare da estação rodoviária, até que uma voz aguda de menino quebrou o marasmo anunciando:
- Torrones, torrones! Três torrones por um real.
Involuntariamente fui levado a um breve sorriso e à vontade de comprar os torrones castelhanos que alegraram a minha infância. De repente, a multidão de passageiros começou a invadir o local. Três que passaram perguntaram-me se o acento estava ocupado e vendo suas aparências, agradeci por ter a companhia do asseado soldado. Queria comprar os torrones, mas à medida que as pessoas entravam via minhas chances diminuírem rapidamente. Num ímpeto gritei "Eu quero, aqui, eu quero!", acenando com uma nota na mão. O guri alcançou-me o pacote com os torrones e só então eu percebi que alguns me olhavam com estranheza, enquanto o soldado, já bem próximo, sorria como se achasse graça de um desajeitado.
- Sua água – disse ele, alcançando-me uma garrafa gelada – Não sabia se era com ou sem gás; trouxe sem gás.
- Está ótimo – respondi. Depois de agradecer a gentileza, lhe ofereci um torrone. Ele aceitou, dizendo que comeria depois, pois sentiria mais sede se comesse imediatamente.
O restante da viagem foi rápido e tranqüilo. A conversa com o soldado mostrou-se agradável. Seu destino era o mesmo meu. Soube que ele cursava o último ano de administração de empresas e se preparava para um concurso federal que o possibilitaria a sair da Brigada Militar. Se fosse bem colocado no concurso poderia escolher a colocação e certamente seria bem longe dali, revelou.
- Não que não goste da cidade – disse e filosofou – É que a cidade não dá oportunidades e sem oportunidades não há esperança.
De repente, lembrei da expressão "terra má" e sem identificar o motivo, esqueci-a ao ver que o ônibus estacionava na rodoviária de minha cidade natal. Preparei-me para descer, seguindo pelo corredor e detido pela lentidão do andar dos passageiros, aproveitei para me despedir do rapaz. Todos se agitavam tentando arrancar mais rapidamente as malas do bagageiro. Enquanto aguardava a minha bagagem na gare revi o soldado que se afastava alto e esguio. Percebi seus ombros largos e julguei-o mais belo do que antes seguindo pela calçada margeada de Ipês carregados de flores amarelas. Por um instante, lamentei não ter perguntado seu nome.
domingo, 14 de setembro de 2008
Melinda perde a inocência
Ninguém entende a fixação megalomaníaca e obsessiva que Melinda nutre por ninhos de coelhos da Páscoa. Todos os cômodos da mansão, a pérgula e o jardim estão tomados de ovos já na sexta da Paixão, espalhados pela criadagem e por homens contratados especialmente para a empreitada. Atrás de cada arbusto e árvore, lá estão os ninhos do orelhudo, bem farto de chocolates Godiva, suíços, é claro, com mais cacau, mais amargos e livres de gorduras trans.
Mas tudo tem uma simples explicação, uma história e todos entenderão. Melinda teve uma infância pobre, muito pobre. Todos os seus amigos de infância acordavam cedo nos domingos frios de Páscoa para caçar o ninho repleto de guloseimas. Seus primos apareciam com as bochechas lambuzadas de marrom e nenhum naco sequer de um triste ovo de chocolate para dividir com a prima pobre. Todos se empanturravam até terem convulsões e Melinda não podia saborear nem um simples alfajor “El Aguila” com gosto de sabão “chibeado” de Paso de los Libres. Mas ela acreditava no coelho amigo e todas as manhãs de Páscoa, prestigiava o ritual – em vão, é bem verdade. Caía da cama de sobressalto e, ainda de pantufas, corria para os esconderijos prováveis revelados nos sonhos recentes da noite do sábado de Aleluia. Nunca encontrou o tal ninho e por anos perdurou a sua busca, sempre assistida pelo pai desempregado, sentado no umbral da porta em silêncio. Uma cena lamentável. De causar dó a mais estóica das almas.
Na realidade a semana Santa sempre representava dias difíceis para Melinda. Na sexta, quando todos comiam peixes assados, fritos, ensopados, recheados, ela comia sardinha em lata com arroz branco e o que era pior, tinha que abrir mão do leite no café da manhã e ir à missa. Seu pai, católico praticante, jejuava de verdade: só pão e água. No final da tarde, às vezes, algum vizinho aparecia com algumas sobras de traíra frita; aqueles mais espinhentos próximos da cauda, já frios e murchos, o que já era uma alegria. Chocolates, porém, ninhos de coelho, ninguém tinha essa idéia.
Enfim, num domingo de Páscoa quente, daqueles no mês de Março, Melinda levantou da cama cedo, disposta a empreender mais uma busca sabidamente inútil, mas desistiu, de súbito, desestimulada pela imagem do pai sentado à porta. Naquele dia, porém, logo no dia em que ela desistiu da caça ao ninho, em que resolveu admitir que já não mais acreditava no Coelho da Páscoa, o ninho estava lá, resultado de um bico bem pago que seu pai tinha feito dias atrás. Como não fez a caça ao ninho, o pai de Melinda frustrado, obrigou-se a revelar o esconderijo, onde estavam os ovos de chocolate, àquela altura, já derretidos pelo calor outonal. Esse dia marcou Melinda com a força de um trauma e quando finalmente rompeu a barreira da pobreza ela passou a comprar e espalhar por todos os lados o maior número possível de ninhos e eles são tantos que ficam lá, alguns esquecidos, por anos e anos, esperando que Melinda os encontre.
Mas tudo tem uma simples explicação, uma história e todos entenderão. Melinda teve uma infância pobre, muito pobre. Todos os seus amigos de infância acordavam cedo nos domingos frios de Páscoa para caçar o ninho repleto de guloseimas. Seus primos apareciam com as bochechas lambuzadas de marrom e nenhum naco sequer de um triste ovo de chocolate para dividir com a prima pobre. Todos se empanturravam até terem convulsões e Melinda não podia saborear nem um simples alfajor “El Aguila” com gosto de sabão “chibeado” de Paso de los Libres. Mas ela acreditava no coelho amigo e todas as manhãs de Páscoa, prestigiava o ritual – em vão, é bem verdade. Caía da cama de sobressalto e, ainda de pantufas, corria para os esconderijos prováveis revelados nos sonhos recentes da noite do sábado de Aleluia. Nunca encontrou o tal ninho e por anos perdurou a sua busca, sempre assistida pelo pai desempregado, sentado no umbral da porta em silêncio. Uma cena lamentável. De causar dó a mais estóica das almas.
Na realidade a semana Santa sempre representava dias difíceis para Melinda. Na sexta, quando todos comiam peixes assados, fritos, ensopados, recheados, ela comia sardinha em lata com arroz branco e o que era pior, tinha que abrir mão do leite no café da manhã e ir à missa. Seu pai, católico praticante, jejuava de verdade: só pão e água. No final da tarde, às vezes, algum vizinho aparecia com algumas sobras de traíra frita; aqueles mais espinhentos próximos da cauda, já frios e murchos, o que já era uma alegria. Chocolates, porém, ninhos de coelho, ninguém tinha essa idéia.
Enfim, num domingo de Páscoa quente, daqueles no mês de Março, Melinda levantou da cama cedo, disposta a empreender mais uma busca sabidamente inútil, mas desistiu, de súbito, desestimulada pela imagem do pai sentado à porta. Naquele dia, porém, logo no dia em que ela desistiu da caça ao ninho, em que resolveu admitir que já não mais acreditava no Coelho da Páscoa, o ninho estava lá, resultado de um bico bem pago que seu pai tinha feito dias atrás. Como não fez a caça ao ninho, o pai de Melinda frustrado, obrigou-se a revelar o esconderijo, onde estavam os ovos de chocolate, àquela altura, já derretidos pelo calor outonal. Esse dia marcou Melinda com a força de um trauma e quando finalmente rompeu a barreira da pobreza ela passou a comprar e espalhar por todos os lados o maior número possível de ninhos e eles são tantos que ficam lá, alguns esquecidos, por anos e anos, esperando que Melinda os encontre.
Quem alimentará os cães?
Há dias precisava ir aos Correios, mas a preguiça, inicialmente, e depois a preguiça e a chuva, uniram-se na tarefa de me convencer a adiar este ato sem importância. Não sou muito de planejar coisas assim simples, deixo o planejamento para as grandiosas e bem remuneradas. Estas coisas simples as faço por contingência e então, em nome dela, obriguei-me, numa tarde ainda chuvosa, a descolar meus glúteos da cadeira. Enfiei um DVD dentro de um envelope, depois de tê-lo enrolado em muito jornal e fita crepe, preenchi o envelope, peguei o guarda-chuva novo e saí em direção aos Correios da Venâncio Aires.
Na saída do bairro, Vila Nova, deparei-me com a indefectível parede de vagões da ALL. É impressionante como cada vez eles são mais numerosos. Passam de cem, por certo. Poderiam ser utilizados como indicador da atividade econômica. Fazem isto com o consumo de cartão corrugado que é utilizado para fazer embalagens. Bem, se podem, significa que nossa economia cresce em ritmo asiático, assim como o tempo às margens dos trilhos. Já esperava há mais de 10 minutos, começou a cair uns pingos e talvez não pegasse a agência aberta. Tive sorte, porém, e a passos largos alcancei a avenida Freitas Valle e de lá os Correios. Fiquei um pouco perdido com o novo sistema de filas, mas o gerente me orientou e eu consegui, enfim, enviar o tal portifólio.
De novo, na Freitas Valle, testemunhei uma cena insólita e comovente: uma mulher chorava quase a beira do desespero, amparada a um muro de umas das belas residências da avenida. Caía uma chuva branda. Os que passavam, talvez também se comovessem, mas seguiam, sem prestar socorro, constrangidos pelo sofrimento tão genuíno. Se ela gritasse, quem sabe, eles se sentiriam mais à vontade para ajudar, mas ela apenas soluçava; o rosto encharcado de lágrimas e chuva, as pernas trôpegas. Eu interferi, aparei-a e a conduzi até o carro-lanche da esquina. Dei-lhe água, mas fiquei em silêncio, sem perguntas. Então, ela já recomposta, entre soluços e como quem se sente na obrigação de dar uma explicação, disse que minutos atrás havia rompido com seu namorado. Explicou que não era bem um namoro e sim um envolvimento informal, pois ele tinha uma noiva; médica, no Paraná. Mas ainda assim o amava, dizia sem precisar dizer. Ela tomara a iniciativa do rompimento, não se veriam jamais, pois estava cansada daquelas migalhas e em dois dias sairia da cidade, por um longo período. Diante desta resignação, pensei, por que então tanto sofrimento e sem que pedisse - revelou a mulher - ele só via a noiva a cada três, quatro meses, que nem sequer uma foto dela sobre a escrivaninha ele colocara, não havia rastros da vida dela na dele, nenhum indício, nome, filmes, poemas e músicas preferidas, mas ainda assim ele preferia “a doutora paranaense”. “O mais doloroso” disse ela “é não saber se eles têm planos”. Atormentava-a o fato de não saber se eles planejavam uma vida lado a lado. Ela sim tinha planos: decorar uma casa juntos, fazer espagueti nas quartas-feiras, ir a Gramado no Natal, quem sabe comprar um apartamento juntos, ter três cães e um filho. “Será que eles têm estes planos ou outros planos?”. Ela agradeceu-me com um beijo no rosto e foi embora e quando deixou a cobertura da lachonete, uma chuva torrencial desabou e ela seguiu pela rua de alma lavada.
Depois disso, se não já gostava de planos, decidi gostar ainda menos.
Na saída do bairro, Vila Nova, deparei-me com a indefectível parede de vagões da ALL. É impressionante como cada vez eles são mais numerosos. Passam de cem, por certo. Poderiam ser utilizados como indicador da atividade econômica. Fazem isto com o consumo de cartão corrugado que é utilizado para fazer embalagens. Bem, se podem, significa que nossa economia cresce em ritmo asiático, assim como o tempo às margens dos trilhos. Já esperava há mais de 10 minutos, começou a cair uns pingos e talvez não pegasse a agência aberta. Tive sorte, porém, e a passos largos alcancei a avenida Freitas Valle e de lá os Correios. Fiquei um pouco perdido com o novo sistema de filas, mas o gerente me orientou e eu consegui, enfim, enviar o tal portifólio.
De novo, na Freitas Valle, testemunhei uma cena insólita e comovente: uma mulher chorava quase a beira do desespero, amparada a um muro de umas das belas residências da avenida. Caía uma chuva branda. Os que passavam, talvez também se comovessem, mas seguiam, sem prestar socorro, constrangidos pelo sofrimento tão genuíno. Se ela gritasse, quem sabe, eles se sentiriam mais à vontade para ajudar, mas ela apenas soluçava; o rosto encharcado de lágrimas e chuva, as pernas trôpegas. Eu interferi, aparei-a e a conduzi até o carro-lanche da esquina. Dei-lhe água, mas fiquei em silêncio, sem perguntas. Então, ela já recomposta, entre soluços e como quem se sente na obrigação de dar uma explicação, disse que minutos atrás havia rompido com seu namorado. Explicou que não era bem um namoro e sim um envolvimento informal, pois ele tinha uma noiva; médica, no Paraná. Mas ainda assim o amava, dizia sem precisar dizer. Ela tomara a iniciativa do rompimento, não se veriam jamais, pois estava cansada daquelas migalhas e em dois dias sairia da cidade, por um longo período. Diante desta resignação, pensei, por que então tanto sofrimento e sem que pedisse - revelou a mulher - ele só via a noiva a cada três, quatro meses, que nem sequer uma foto dela sobre a escrivaninha ele colocara, não havia rastros da vida dela na dele, nenhum indício, nome, filmes, poemas e músicas preferidas, mas ainda assim ele preferia “a doutora paranaense”. “O mais doloroso” disse ela “é não saber se eles têm planos”. Atormentava-a o fato de não saber se eles planejavam uma vida lado a lado. Ela sim tinha planos: decorar uma casa juntos, fazer espagueti nas quartas-feiras, ir a Gramado no Natal, quem sabe comprar um apartamento juntos, ter três cães e um filho. “Será que eles têm estes planos ou outros planos?”. Ela agradeceu-me com um beijo no rosto e foi embora e quando deixou a cobertura da lachonete, uma chuva torrencial desabou e ela seguiu pela rua de alma lavada.
Depois disso, se não já gostava de planos, decidi gostar ainda menos.
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