Guri gostava de ser guri e ser assim chamado. Era melhor do que Chico. Há 12 anos e 10 meses atendendo pela alcunha, já lhe garantia o direito de se diferençar dos outros guris. Ademais, só lembrava do nome Francisco, quando chegava a caixa de papelão, repleta de biscoitos, mandada pela madrinha de Porto Alegre. "Para o meu querido Francisco" lia na tampa da caixa. Pegava um pacote de suas preferidas, as bolachas champanhe, e deixava o resto para irmã, a pobre, aquelas alturas já enjoada do almoço de semanas a base de jacuba e leite em pó quase implorado as beatas da Paróquia. Ele se ajeitava pelos cantos da vila, ajudando a descarregar um caminhão de tijolos, carpindo, de mandalete. Às vezes torcia o pescoço de uma galinha pras putas da casa amarela que se apavoravam com a ave estrebuchando pelo chão, mas ardiam em fogo lento sob os barrigões sujos dos caminhoneiros do Postão. Este era o seu melhor biscate. Sempre lhe rendia a coxa da galinha e mais alguns trocados que se convertiam em sanduíche de mortadela e guaraná Sielva no bolicho do Dirceu.
Há uma semana não ia ao colégio. O pai sumido há um mês, não apareceu na reunião de entrega das notas. Sem o bilhete assinado por um responsável não podia entrar na aula. A velha Ema ele não podia pedir, ela já o representara na homenagem do dia das mães. O remédio, então, era se esconder. Juntava a Maria Callas, a cadela que ao ouvir ópera começava a uivar, e seguia pelos matos costeando o rio, por toda a manhã.
Da última vez, voltando pra vila, teve que cruzar a ponte e as coisas não foram bem. Três homens que passavam jogaram a cadela sobre o vão. Tivesse ela caído na água, estaria bem; era boa de nado a Maria Callas. Mas não, ela caiu sobre as pedras. Guri nem se deu ao trabalho de descer, quando viu o sangue vertendo pela boca do animal e aceitou a carona de um carroceiro que viu com os próprios olhos "até onde vai a crueldade do ser humano".
Ele incorporou uma feição insubordinada e só apareceu pelas casas perto das 4 horas. Antes, decidido a recuperar as aulas cabuladas, passou na Flavinha pra pedir o caderno emprestado. O pai dela nem deixou ele cruzar o portão; mentiu que a guria estava pra cidade com a mãe. Guri tomou seu rumo, cruzou o campo e, varado de sede, passou pela casa da vizinha onde deixava uns potes de margarina vazios para formar gelo pra por no ki-suco. Dela ele escutou "Não tem gelo" e reconheceu os potes jogados numa valeta servida pela água do tanque de lavar roupa.
Contornou o campinho, pulou o muro e entrou em casa. A irmã chorava, encolhida no sofá. Em pé, Dona Valentina e seu Pedro, os velhinhos da casa de pedra, o aguardavam. O velho, segurando um trançado de oito disse: "Corri os covardes a relhaço, meu filho".
Guri virou-se calado e saiu. Em pouco tempo estava sobre a ponte onde perdera a Maria Callas. Jogou-se no rio. Não deixou carta, nem bilhete, não sentia tristeza, mas quis morrer. E assim - mesmo sabendo que podia - não lutava com a correnteza, se afogaria logo, até que viu um bote de madeira largado nas pedras. Deu uma dúzia de braçadas e alcançou o manso do rio. Mais meia-dúzia e já lhe dava pé. Caminhou até a margem, arrastou o bote até a água e, dentro dele, remando, sumiu na curva do rio a direita e nunca mais retornou.
Nenhum comentário:
Postar um comentário