O ônibus parou bruscamente. O motorista saiu de sua cabine e aos gritos, para que todos ouvissem, disse:
- O ar-condicionado estragou. As janelas são lacradas, por isso vou ter que abrir as tampas no teto.
Fez o que anunciara rapidamente e pôs de novo o ônibus a rodar. Eu não estava ainda inteiramente despertado e a modorra quente me incomodava. Para piorar as coisas, um brigadiano fardado e armado acomodara seu corpo na poltrona ao meu lado. Com o movimento do ônibus um vento quente e seco invadiu o carro, trazendo o cheiro de carniça de algum animal morto no asfalto, misturado ao odor fúnebre das flores de Maria-mole que lá fora vergavam ao sabor do vento norte. Amaldiçoei aquela terra, talvez, pela milésima vez em minha vida. Tentava me acomodar, mas o revólver que o soldado trazia no coldre incomodava pressionado contra o meu quadril. Retomei a posição antiga, mas antes olhei para o rosto do policial para ver quem dividia comigo aquele espaço exíguo, que nos fazia tão íntimos. Era um rapaz jovem de uns 25 anos, louro, ombros largos e com uma aparência amistosa. Diria-o bonito não fosse a alvura da pele. Fechei os olhos para fingir que dormia, pois me apavorava a possibilidade de ter que percorrer os 200km que me separavam do meu destino tagarelando com um desconhecido.
Permaneci com os olhos fechados por vários minutos, mesmo tendo a janela para contemplar a paisagem. O certo era que não queria contemplar aquela aridez varrida pelo vento que jogava mil grãos de terra vermelha contra o vidro. Quase não se via nada naquela extensão interminável, sinuosa, que vez por outra era desenhada por um bosque solitário de eucaliptos ou por uma formação rochosa que aflorava no solo ou nas encostas das coxilhas. Abri os olhos e vi um peão e seu cavalo cruzando o campo, roupas revoltas no vento, o chapéu levado à mão junto a um rebenque preso ao punho, balançava num aceno aos estranhos que cruzavam seus domínios. Gentil e triste resignação! O soldado brigadiano conversava animado com o passageiro do outro lado do corredor e como o assunto não haveria de me interessar, voltei a fechar os olhos e só os abriria na próxima parada.
Chegamos à rodoviária de uma pequena cidade situada às margens de um rio assoreado. Mal o ônibus parou, dezenas de pessoas cercaram o veículo. Planejava descer para comprar uma garrafa de água, mas desisti diante da agitação que tomou conta dos passageiros dentro do carro. Todos tinham pressa para descer, comprar alguma guloseima e retomar novamente seus lugares. Surpreendeu-me a gentileza do jovem brigadiano que se ofereceu para trazer algo que quisesse da lanchonete. Dei-lhe uns trocados e pedi que me trouxesse água, em parte agradecido por não ter que sair de minha poltrona, em parte receoso por ter que retribuir a gentileza ao menos lhe dando atenção para uma conversa.
Por alguns instantes o silêncio tomou conta do carro. Toda a agitação estava lá fora, na gare da estação rodoviária, até que uma voz aguda de menino quebrou o marasmo anunciando:
- Torrones, torrones! Três torrones por um real.
Involuntariamente fui levado a um breve sorriso e à vontade de comprar os torrones castelhanos que alegraram a minha infância. De repente, a multidão de passageiros começou a invadir o local. Três que passaram perguntaram-me se o acento estava ocupado e vendo suas aparências, agradeci por ter a companhia do asseado soldado. Queria comprar os torrones, mas à medida que as pessoas entravam via minhas chances diminuírem rapidamente. Num ímpeto gritei "Eu quero, aqui, eu quero!", acenando com uma nota na mão. O guri alcançou-me o pacote com os torrones e só então eu percebi que alguns me olhavam com estranheza, enquanto o soldado, já bem próximo, sorria como se achasse graça de um desajeitado.
- Sua água – disse ele, alcançando-me uma garrafa gelada – Não sabia se era com ou sem gás; trouxe sem gás.
- Está ótimo – respondi. Depois de agradecer a gentileza, lhe ofereci um torrone. Ele aceitou, dizendo que comeria depois, pois sentiria mais sede se comesse imediatamente.
O restante da viagem foi rápido e tranqüilo. A conversa com o soldado mostrou-se agradável. Seu destino era o mesmo meu. Soube que ele cursava o último ano de administração de empresas e se preparava para um concurso federal que o possibilitaria a sair da Brigada Militar. Se fosse bem colocado no concurso poderia escolher a colocação e certamente seria bem longe dali, revelou.
- Não que não goste da cidade – disse e filosofou – É que a cidade não dá oportunidades e sem oportunidades não há esperança.
De repente, lembrei da expressão "terra má" e sem identificar o motivo, esqueci-a ao ver que o ônibus estacionava na rodoviária de minha cidade natal. Preparei-me para descer, seguindo pelo corredor e detido pela lentidão do andar dos passageiros, aproveitei para me despedir do rapaz. Todos se agitavam tentando arrancar mais rapidamente as malas do bagageiro. Enquanto aguardava a minha bagagem na gare revi o soldado que se afastava alto e esguio. Percebi seus ombros largos e julguei-o mais belo do que antes seguindo pela calçada margeada de Ipês carregados de flores amarelas. Por um instante, lamentei não ter perguntado seu nome.
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