segunda-feira, 20 de dezembro de 2010
Conto de Natal III
É nas filas dos caixas que esses acontecimentos fortuitos são mais freqüentes: crianças gritando e esperneando por um brinquedo que o pai não quer dar, descontos anunciados e não concedidos, devoluções, cartões bloqueados, homens comprando absorventes, mulheres comprando preservativos, mas cenas ternas, tocantes são incomuns.
Num dia 23 de dezembro de um ano qualquer dois acontecimentos improváveis agitaram a cabeça de um homem, um gerente de supermercado. No meio da manhã, ele descera da sala de reuniões onde tratou das metas com os seus chefes. As deles estavam sempre abaixo, motivo de grande confusão para um jovem pai de família que se esforçava para fazer o melhor. Caminhava pelo mezanino e lá do alto olhava a loja entupetada de clientes, as imensas filas nos caixas. Como é possível vender tanto e não bater as metas? Era bom com contas, mas nunca entendeu essa lógica do capitalismo, vender sempre, crescer sem parar...
Mal chegou ao balcão de atendimento quando viu que um senhor velho era conduzido por um vigilante na direção da sala onde examinavam os suspeitos de furto. Seguiu na mesma direção, mas foi interrompido por outra funcionária que falava sobre um problema com uma senhora.
- Pede pra esperar que eu já volto – disse o gerente.
Entrou na salinha do interrogatório e encontrou uma cena previsível, iguais a outras que testemunhara ali mesmo, o senhor com as calças arriadas, o vigilante gritando com o homem, dizendo coisas como “ser pobre não é motivo pra roubar’. Ele sentiu, ainda que por um segundo, vontade de esbofetear o ladrãozinho, que estragava o seu dia, tumultuava seu expediente. Deixou que o vigilante fizesse o trabalho sujo.
Mal se ouvia o que o velho dizia, na verdade não o deixavam se explicar, enquanto ele se desfazia de mais e mais roupas até que perceberam que não havia nenhum objeto de furto em poder do velho. Instruíram que se vestisse e fosse embora, e ele foi, de mãos vazias.
Era a vez do problema com a caixa, com a velha.... De longe não deduzia o que diabos acontecia. A mulher queria levar uma toalha decorada com motivos natalinos, dizia que era presente para a nora, mas da sua mão só saiam algumas moedas de centavos e duas ou três notas de cédulas várias vezes amassadas, dobradas, enfiadas em bolsos; não somavam nem 10% do valor da compra. A caixa argumentava, mas a velha não parecia entender. “Só pode ser uma espertalhona ou uma louca que soltaram do hospício”, pensou o gerente, pois ela insistia contando as moedas na frente de todos, uma a uma, desenrolando as notas para que todos vissem que ela tinha dinheiro e queria comprar.
Outra pessoa que aguardava na fila, talvez comovida ou querendo por fim no impasse, ofereceu-se para pagar. O gerente então pensou que talvez essa pessoa, dona de um ato caridoso, já tenha concluído aquilo que ele já conjeturava, de que a velha não era louca, e sim alguém que, como ele, não entendia muito bem a lógica do capitalismo. Nesse momento o gerente retirou o dinheiro do bolso, enfiou na caixa registradora e disse para a velha que ela podia ir, e ela foi levando a toalha vermelha, decorada com motivos natalinos, embrulhada para presente.
Conto de Natal II
- Mulher, não posso cometer essa injustiça!
- Injustiça contra quem? No guri tu não pensas...
Penosamente Josué entregou o pacote. Um sinal com a cabeça e ele consentiu que seu pai saísse levando o que fora, até a pouco, o melhor presente de Natal de sua vida. Por alguns dias ficaria macambúzio, sem mostrar os dentes, mas depois tudo voltaria ao normal.
Os amigos entenderam que era hora de cada um ir para sua casa, mesmo porque sem o Corcel II da polícia, a brincadeira perdia mais da metade da graça.
- Tchau, Josué! Mais tarde a gente volta.
Não demorou muito e a vovó apareceu sob a parreira com uma banana e um copo de leite. Antes de retornar à cozinha falou de seus planos para o reajuste da aposentadoria, que dependendo do que viesse no próximo mês, talvez desse para recuperar o Corcel ou algo que lhe se aproximasse. Samuel só agradeceu e ficou quieto. Ao sair, a velha quis que ele chorasse, pois pensava que se não fosse naquela hora seria depois, quando já homem não é mais razoável chorar. Mas ele não chorou.
Dias antes Plínio queimava os miolos pensando no que dar de presente para o guri naquele Natal. Sabia que queria um Gigantão, todos os guris queriam o caminhão de minério todo amarelão, tão grande que não dava no seu bolso. O guri precisava de um ki chutes, mas sabia que o decepcionaria. Procurava um brinquedo. Namorou muitos na vitrine da Obino, mas eram invariavelmente caros os à pilha. Entrou na loja, viu exposto o Corcel II vermelho com sirene e arriscou perguntar o preço para uma moça que atendia. Ela procurava pelo valor numa pasta, muitas folhas sobrepostas. “Desculpa, eu comecei hoje, ainda me atrapalho”. Era extensa a lista, mas finalmente encontrou o preço. Estava inacreditavelmente barato.
- Vou levar no carnê – disse Plínio, eufórico - Faz um pacote bem bonito tá moça? É pro meu filho.
Dia 26, Plínio chega para almoçar. Estranhou encontrar a vendedora na sala de casa.
- Tava errado o preço Seu Plínio. Se não resolver, vou ter que pagar e ainda vou pra rua.
Nos segundos que se seguiram, Plínio fez as contas que não fechavam e certificou-se de que não poderia arcar com a diferença que era grande. Que remédio senão devolver.
Josué sabia que o pai só fazia o certo, e queria ser como ele. Por isso devolveu, sem reclamar, nada de revolta, mas sabia que não ia ser fácil lidar com aquela tamanha tristeza.
segunda-feira, 29 de novembro de 2010
Conto de Natal
Essa esperança pueril ela depositava em seu pai. Chamava-se Margot por escolha dele. Ela nasceu no mesmo dia que a filha do Hemingway e por isso a homenagem. Uma escolha inteligente de um homem culto, que lia muito e que afastaria de vez esse sentido, essa consciência da própria pobreza.
O Flávio há dias já sabia o que iria desembrulhar na noite de Natal, mais de um pacote era certo: um vídeo-game Atari, um par de tênis com velcro ao invés de cadarços, além das roupas novas para vestir na ceia. Toda a gurizada já sabia o que receberia e entre os presentes aguardados com entusiasmo havia bicicletas, patins, roupas e, Margot, ao ser questionada sobre o que escolhera, ficava sem reposta, precisava desconversar. Haveria um presente sob a árvore, sempre havia, é que ela não lembrava o que ganhara no ano passado e ainda não tinha se dedicado a pensar sobre o que poderia ser o próximo, era impossível prever. Acaso no ano a árvore ficasse vazia, apenas o presépio aos seus pés, ela diria que o pai fizera uma poupança, ou que lhe daria uma viagem. Eles acreditariam, eram bobos aqueles meninos.
Mas foi também Sartre que disse “o problema é quando a criança cresce, e vê de cima os seus pais”. Ela crescera rápido nesses últimos meses, irritava-se mais facilmente, queria coisas que nunca tivera, queria dar o primeiro beijo e ela não via movimentação nenhuma no sentido de compras de Natal.
Noite quente de dezembro, Margot entra em casa, aquele silêncio, tudo tão diferente das casas vizinhas, e vê o pai vencido pelo calor prostrado na poltrona, o mate e a chaleira abandonados ao lado no chão, O Tannenbaum na vitrola. Ela viu o embrulho do presente que de tão pequeno quase não se via entre Reis Magos, vaquinhas e a Sagrada Família. Por isso ignorou, passou reto. Os amigos queriam ver o seu presente, mas por que insistiam tanto? Mais um pouco e ela teria que aplicar a história da viagem, da poupança, mesmo odiando mentiras.
Mas ela voltou em casa. A irmã mais velha chamou a atenção como se dissesse “tenha um pouco de compaixão, é simples, mas é um presente”.
Ela sentiu-se forçada a abrir o pacote e a decepção foi a já esperada, grande, mas não tão intensa quanto à decepção límpida e cristalina que viu estampada no olhar e nas faces morenas de seu pai.
segunda-feira, 8 de novembro de 2010
Sobre a verdade
Nas férias em São Chico, não havia acontecimento maior que a chegada de vô Marciano do Toroquá, homem de poucas expressões, que só deixava escapar emoções através do azul do olhos e a partir de alguns breves gestos, como o de presentear. Da bagagem retirava morcilhas, queijos, goiabada, açúcar mascavo e muita rapadura, mandada pela tia Antoninha. Era um folguedo. Na verdade, a ida ao Super Safra, o supermercado da cidade, por vezes a superava. Para a empreitada a vó Martina penteava os longos cabelos brancos até as pontas que quase acariciavam os calcanhares, sentada a uma cadeira de palha, sob a vasta parreira, perto do poço d'água. Lembrava uma velha navaja dos filmes. Depois enrolava tudo num coque, pegava o sacolão de couro, a pequena bolsinha cravejada de pedras e subia, despacito, a ladeira, seguida por mim e pela prima Roseane, que morava por lá, desde que sua mãe atinara subverter a capital federal. Era dia de Super Safra e de se empanturrar de guloseimas, comprar revistinhas e ainda tomar um sorvete na volta, obviamente, acompanhado de uma garrafa de guaraná Sielva.
Numa dessas idas à cornucópia assisense, conheci a Maria Circuiti, pessoalmente. Dela, só tinha ouvido falar, mas a reconheci logo que a vi surgir entre as gôndolas. Soluçava e dava saltinhos a cada vez que pronunciava aquela palavra que entre muitas, encarna a feição mais chula da desejada cavidade feminina que, dizem, derrubou reis e aniquilou impérios. Estava a minha frente a mulher que bradava o palavrão, sinônimo de vagina, para os quatro ventos. Apesar dos risos que causava ao passar, via nela um imenso sofrimento. Sabia de histórias, a primeira vista, engraçadas e, de outras, desoladoras. Ela não foi ao casamento da filha, a funerais de parentes, pois o seu distúrbio que se enquadra dentro da chamada Síndrome de Tourette, se agrava em momentos de forte emoção. Amiga de minha vó, era figura freqüente na chácara e nos acostumamos com o seu tique nervoso.
Há tempos, numa festa, comentei com amigos sobre a maldição da triste D. Maria. Não acreditaram, mas dias depois mudaram de posição, quando a história foi ter em ouvidos de outra pessoa que a confirmou.
Pessoas não acreditam na ida do homem à lua, outros na física-quântica, mas acreditam em numerologia, mapa-astral, por isso acredito que grande parte daquilo que acreditamos depende de como andamos tratando nossa cosmovisão.
segunda-feira, 4 de outubro de 2010
Deusas de assombrosas tetas
Deveria se chamar “Notas sobre o matrimônio”, mas diriam todos, “como alguém que nunca se casou pode palpitar sobre o casamento?”. Por isso, no topo, a referência a Caetano.
Ela trabalhava na repartição, onde recebia um razoável salário, que somado aos ganhos do marido, um pequeno empreiteiro, dava-lhe o status de classe-média “A”. Isso significa carro do ano na garagem – não conta a camionete do marido que é do trabalho – televisão por assinatura com 2 pontos, um na sala, outro no quarto, computador com internet, I-phone, viagens às Termas ou a Buenos Aires na Páscoa e ao litoral no verão, planos de ter filhos, um casal de gêmeos, para resolver tudo de uma vez só, o de uma pós-graduação e um outro, este totalmente secreto, e só dela, o de por implantes de silicones nos seios.
Havia a mensalidade da casa de repouso onde vivia sua mãe com Alzheimer, mas ela fez as contas e concluiu que com a promoção, uma ajudinha mais do maridão e ela estaria com implante antes da praia de fevereiro. Imaginou-se abundante nas areias de Capão.
Tinha que ser surpresa para ter graça. Ela percebia o modo como ele observava as fotos das modelos dos anúncios nos encartes da Marisa. No usuário dele do computador, sempre uma ou outra foto nova de mulheres em roupas e posições insinuantes. A maioria exibia um grande par de peitos. A relação, o rala-e-rola, oscilava entre períodos quentes, outros frios, quase sempre quentes, mesmo assim ela não ia se arriscar.
- Vou por peitão.
Um dia ele chegaria do trabalho lá pelas 7h, ela já estaria em casa, toda perfumada, esperando, de conjuntinho vermelho, mas sem cinta-liga, porque isso é vulgar. Ligou pra Solange, que sabia tudo sobre plástica e tinha peitões desde que se conheceram:
- Amiga, já recauchutei tudo, mas os peitos são meus, naturalíssimos – revelou Solange. Com a amiga pegou o telefone de um cirurgião uruguaio que fazia milagres e cobrava a metade do preço, mas ainda havia um problema: “A cicatrização, fofa! Tá louca! Não tem como fazer surpresa. São dias de curativos”.
Ela não se sentiu derrotada, inventou um curso de 15 dias e se mandou, com a Solange, que era madame, e não dava satisfações para o marido, rumo a Salto, na República Oriental.
Dias antes, quase desistiu. Ouvira uns boatos de que o cirurgião era meio metido a conquistador, mas foi convencida; "é boato espalhado pela Suzete", que atravessou a fronteira para tirar uns culotes e acabou caída de amores pelo cirurgião.
- Vai tranqüila – disse a Solange – é intriga. No mais, é fama de cirurgião plástico...
- É né? Deve ser a fama... por causa do Pitanguy.
Dias depois, de volta à cidade, sem curativos ou pontos, preparou-se toda. Cabeleireiro, massagens, ofurô. Mostrou pra toda a mulherada. “Eu mato quem abrir esta boca e estragar a surpresa”. Sabem como é cidade pequena.
Ele chegou, foi direto pro banho. Depois, direto pra cama. Ela mandou ver. Foi quente! Ele gostou, estava sem fôlego. Mas se assombrou com os melões. Não disse nada à esposa, mas se lembrou de como era bom quando cabiam inteiros na boca. “É, vou sentir saudades”.
sábado, 8 de maio de 2010
Complexo de Julien Sorel.
“Perdi minha vida por delicadezas”
Artur Rimbaud
Já me chamaram de estranho por gostar de ópera, e por dizer que a melhor cantora do mundo é uma negra americana, que canta em alemão.Já me chamaram de cabeçudo, narigudo e gordo e é certo que ser cabeçudo não tem jeito, mas gordo não sou mais, e o tamanho do nariz posso resolver com uma rinoplastia; só se eu quiser.Algumas coisas têm jeito, outras não.Já me chamaram de confuso e eles têm certa razão, pois ando confundindo mesmo as coisas. Tenho confundido Thomas Hobbes com Thomas Morus, Frei Jaime com Frei Celso, que são freis e Capuchinhos, mas não a mesma pessoa. Admito que ande esquecendo o nome de algumas pessoas, de atores, de filmes, versos de alguns poemas; mas garanto que não fumo maconha e que já marquei a tomografia.
Já me disseram denso, o que deixei para trás para ser tenso, mas preferia a minha velha densidade. A tensão endurece os músculos, pesa a cabeça, tomba os ombros. A densidade nos põe no topo, ainda que imaginário, um topo.
Já me disseram viado por não jogar futebol, de bicha por ler Irmãos Grimm no recreio, indiferentes ao fato de que toda esta história de viado, bicha, tem a ver com sexualidade e pouco com esportes e livros.
Já me perguntaram numa entrevista se sofria de alguma fobia, pois um homem que não tem habilitação pra dirigir aos 30 não deve ser normal, ignorando o fato de que já dirigi trator, camionete, fubica, caminhão velho, lancha, planador, dirigível e asa-delta e o que é melhor; sem nunca ter atropelado alguém. A vida é que, não sei, talvez não esteja sendo bem conduzida, mas é que ainda não pilotei espaço-nave.
Já me chamaram de grosso por ser franco e fingido por ser gentil.
De mentiroso por gostar de metáforas.
De fofoqueiro por ajudar a uma amiga.
De sovina por não dividir a conta do mecânico.
De otário por pagar a dívida, que não era minha, com o serralheiro e a serigrafia...
Já me chamaram de traidor por beijar a ex-namorada de um amigo.
De fiasquento por mandar flores, arrependido, para esse amigo.
De fraco por chorar sempre que leio “Dois Guaxos” do Faraco.
De covarde por ter fugido da briga e por ter medo de tubarão branco.
De bêbado por beber cerveja, ignorando que não bebo uísque.
De frágil por abominar baratas e de idiota por ter nascido.
A verdade é que tem criança que chora ao me ver partir, cãozinho que faz festa ao me ver chegar. Indiferentes aos meus muitos defeitos, tenho amigos, incluindo alguns, que, a caminho da Austrália, passaram por aqui pra se despedir, e incluindo outros que acordam cedo pra me dar 50 contos e um beijo no rosto.
A verdade é que a felicidade me ronda, apesar da rinite/sinusite, da hérnia, do bruxismo, das roupas velhas do armário, dos poucos livros novos na estante.
A verdade, a boa e velha verdade, é que sou livre, tenho pão e sou livre, e assim vou continuar a ser.
Já me chamaram de estranho por gostar de ópera...
sábado, 20 de março de 2010
O que falam sobre os franceses.
Sim, luvas brancas de um tecido que lembrava cetim. Ele nunca vira uma mulher vestir luvas de cetim, a não ser nas cerimônias de casamento. Ela retirou-as com delicadeza, revelando mãos tão finas e alvas, e as depositou no interior da bolsa Channel. Agora, estava sentada a sua frente, a uma mesa de café de distância, sorvendo um chá com madeleines, as quais exalavam seu odor de essência de flor de laranjeira pelo recinto. Sabia que era francesa, mas esquecera seu nome. Procurou no programa, mas nenhum lhe pareceu familiar. Outra pessoa, então, perguntou e ela respondeu, "Eléne Truffaut". Será parente do diretor de cinema?, ele pensou, quase ao mesmo tempo em que a pessoa que antes perguntara o nome, para o qual ela tinha a resposta na ponta da língua: "não, não sou parente do cineasta" - e em bom português, completou - "É um sobrenome muito comum na França, o Truffaut, como Silva no Brasil".
Martine, a discípula de Barthes que figurava como a presença mais importante do congresso, aproximou-se e falou alguma coisa no ouvido de Eléne e saiu. Eléne mal se mexeu e ele sentiu um agradável sentimento de proximidade por aquela estrangeira atraente, cabelos negros, contrastando com a alvura da pele. Sentia que poderia abordá-la sem receio, trocar algumas palavras e logo, estaria com o braço em torno daquela cinturinha, ou no mínimo, sentado a sua frente, à mesma mesa, quando poderia convidá-la para tomar uma bebida.
Faltavam as palavras, no entanto. Precisava articular um plano de aproximação, escolher cada palavra do discurso de apresentação. Pensava na literatura francesa, mas conhecia pouco além de alguma novela de André Gide. Se falasse sobre Foucault, se embaralharia. Sobre cinema, o melhor expediente, o parentesco com Truffaut, já tinha sido desperdiçado por uma criatura efeminada que certamente nutria apenas interesses acadêmicos por Eléne.
Esperou que algo lhe ocorresse e enquanto esperava por esta luz, observava o nevoeiro que se formava no final da tarde no parque serpenteado por Plátanos. Distraído, não percebeu que Eléne já o observava nem tampouco que ela se aproximara e estava em pé ao seu lado.
- Vou me sentar – disse Eléne, já puxando a cadeira.
Em minutos ficaram à vontade; ele, impertinente, retirou as luvas brancas das mãozinhas francesas; ela pagou o vinho caro, chileno; ele soube que ela lecionava na Alemanha; que orientava alunos franceses do doutorado na Universidade de Leipzig. Ele, um simples estudante de Comunicação Social, não tinha motivos para resistir ao convite para tomar a última garrafa de vinho na suíte da moça.
Assim que atravessaram a porta do quarto de hotel, Eléne começou a livrar-se das roupas. Ele abriu o vinho, providenciou as taças e antes de servir-se foi até o banheiro tirar a água do joelho.
Agitava-se de excitação. Encontrou-a já quase sem roupa, sentada na borda da cama, distraída enquanto coçava cuidadosamente o calcanhar. A cada roçada de unha um tipo de pó acinzentado soltava da pele de Eléne, acumulando-se em torno do pé direito, formando um acúmulo do que pareciam raspas de queijo Roquefort. Ele se aproximou para ver com mais detalhe. E era isso mesmo, restos de pele, células mortas acumuladas provavelmente pela ausência de banhos regulares. Mas o que sobressaía era o perfume de Eléne e ao ver os seios nus da francesa, levemente caídos, mas com os bicos bastante empinados, não teve dúvidas que teria uma inesquecível noite de prazer.
Ao final, só teve uma certeza: tudo o que falam sobre os franceses é a mais pura verdade.
sexta-feira, 12 de março de 2010
Para Agustina.
Para Nelson.
Na noite de segunda-feira para terça perdi o sono, o que não é um evento raro. Como de costume liguei a tevê para me distrair e, quem sabe, retomar os sonhos. Passava o filme “Cinema, aspirinas e urubus”, para mim, o melhor filme brasileiro dos últimos anos, sobre a amizade insólita entre um alemão e um sertanejo. O alemão percorre o sertão vendendo aspirinas em uma fubica, nos dias que antecedem a entrada do Brasil na Segunda Guerra. Ele dá uma carona ao sertanejo que busca o progresso do sul, enquanto ele foge dos horrores da velha Europa. A separação dos dois é iminente. Em algum momento haverá o afastamento como é corrente nas histórias sobre amigos.
Só pode ser coincidência, pensei, pois a poucas horas me despedira do amigo Nelson Kullmann, no crematório de São Leopoldo. Alemão brasileiro, ela travara sua própria batalha, mas contra um inimigo implacável, um câncer insidioso no cérebro. Gostava de manter longas conversas em torno de uma churrasqueira, comigo inclusive, em suas visitas regulares a Alegrete. Raramente tínhamos a mesma opinião sobre os temas que discorríamos, o que só fortalecia o nosso respeito mútuo. Seu Nélson foi a pessoa que mais sinceramente demonstrou acreditar em minhas competências que até mesmo eu duvido, por vezes, que as tenha. Dele só ouvia palavras de encorajamento, de incentivo e, por isso, mas não só por isso, vou sentir muitas saudades de nossas conversas regadas a chimarrão, vinho chileno ou cerveja e sempre ao som da orquestra de Andre Rieu.
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010
Sevilhanos.
Segunda pela manhã, primeiro dia útil após o término do horário brasileiro de verão, acordei com uma estranha vontade de me mudar para Sevilha e foi só porque ouvi João Cabral de Melo Neto dizer que foi em Sevilha que ele conheceu o povo mais gracioso entre os povos. Entre os vários “compreende?” que entremeiam suas falas, disse sobre si mesmo que sendo ele uma pessoa completamente sem graça só poderia sentir-se atraído por um povo gracioso como ele diz ser o sevilhano.
Eu não tenho graça nenhuma e falo da graça, não da análoga à beleza, não que eu tenha a segunda, mas me refiro a que é sinônimo de humor, a graça dos comediantes ou daquela mais trivial que habita a nossa vizinhança, entendida como a capacidade de contar piadas dos que são exímios no ofício do humor.
Eu nunca gostei de piadas, e sempre acreditei não gostar de piadas porque elas nunca são uma piada; após a primeira vem uma penca delas. Não tendo muito estoque de risos e muito menos de gargalhadas, logo não consigo mais rir e me constranjo.
Não gosto de piadas porque simplesmente não acho graça nas piadas. Acho graça, sim da forma como elas são contadas e pouco originais são os estilos atuais. É bem verdade que das piadas do Tuio eu costumava rir até de três, ou quatro, dependendo do quarto lunar, mas decerto é porque ele bem poderia ser um sevilhano, o que só serve para reafirmar que graça é um talento.
Já ri também do Terça Insana, do Cócegas e até do CQC, mas rio mais dos repentes cheios de presença de espírito que alguns amigos deixam escapar, sem que eles próprios reconheçam algum talento para o riso, mas que decerto têm, como os sevilhanos de João Cabral, que mesmo sendo graciosos, certamente assim não se reconhecem.
Eu não tenho nenhum talento para as piadas. Aliás, tenho andado atrás de um talento. Quem tiver algum aí sobrando, que me empreste, se não lhe fizer falta, pois percorrer jornadas atrás de um talento a estas alturas do campeonato não tem a menor graça.
Há uma dose certa de cerveja ou vinho que me deixa um pouco engraçado, eu sei, mas tem que ser uma dose certeira, milimetricamente medida. Um pouco a menos, sou um avoado e por vezes me irrito facilmente, um pouco a mais e me amua o olhar. Assim, para desenvolver o talento da graça , além de beber com alguma freqüência, precisaria beber com muita precisão: outro talento que não possuo.
Devo esquecer esse talento, o de fazer rir. Talvez devesse desenvolver outro; o do melodrama. Almodóvar faz melodrama e ao invés de fazer chorar, faz rir. Ou não é assim em todos os seus filmes? ...aquelas mulheres todas com caras, roupas e jeito de travesti, maquiagem carregada, são tão infelizes, mas tão engraçadas.
Almodóvar bem que poderia ter nascido em Sevilha, mas não, nasceu em La Mancha.
Alguém sabe onde fica esta cidade? Eu não, só sei que não deve ser bom o meu prognóstico. Acho João Cabral e seus “compreende?” muito graciosos e gosto especialmente de vê-lo falar “gracioso” e certamente quem nestes dias gosta desta palavra, só pode ter perdido a graça definitivamente.