domingo, 22 de março de 2009
Depravações
É hora de parar, pois é impossível imitar Rimbaud ou Auden.
Diário do viajante solitário.

Sem dúvida há vantagens óbvias nas viagens solitárias. A mais clara me parece ser a de não ter que seguir roteiros pré-estabelecidos. O viajante só escolhe destinos movidos pela percepção momentânea, pelos sentidos, como uma mudança na direção do vento e isso é irresistivelmente prazeroso.
Pense nas excursões, promovidas por operadores de turismo, o transporte parece sempre seguir a direção contrária a nossa vontade; toma uma estrada de asfalto, enquanto queremos uma estrada de terra bem empoeirada, cuja seta em cruzamento indica “queda d’água” , a qual, inexoravelmente, vai ficando para trás, emoldurada pela traseira do ônibus. Melhor abrir as janelas pra sentir o vento na cara, mas elas estão lacradas e a brisa refrescante provém de um ar-condicionado. Quando se quer mergulhar numa piscina natural ou se jogar numa rede na praia, é hora de conhecer um povoado e comprar souvenires. O viajante solitário não experimentará isso; ele poderá seguir as setas que escolheu, as trilhas menos exploradas e os recantos mais secretos, refúgios da molecada local, e depois, se não tiver gostado do que viu, retornar ao que deixou para trás.
Há um detalhe pitoresco sobre as fotos, pois não há viagens sem elas. O viajante solitário só aparecerá em superclose nas que ele tirou dele mesmo ou a não ser que um gringo educado faça a gentileza de fotografá-lo, só trará fotos de paisagens na bagagem e essas em superclose limitadas pela extensão do braço, mas ele fará mais amigos e contemplará melhor os entardeceres.
Se ele quiser cair na balada e de lá sair carregado, é simples, a solução é fazer amizade com um taxista ou um barman e talvez seja prudente carregar um cartão com o endereço da hospedagem. No entanto, o mais provável, é que ele volte carregado por alguém que conheceu lá, na balada; os viajantes solitários se reconhecem na multidão.
Mas o melhor da viagem só está por vir, está sempre por vir e é exatamente o inesperado. Numa tarde, lá pelas seis, ele estará sentado em frente a uma Igreja Barroca em algum litoral, luxuosamente decorada para a festa do Divino, e encontrará um grupo de senhoras sexagenárias, relativamente perdidas. Ele decidirá por acompanhar aquele grupo de velhas aparentemente felizes a despeito de tão proximidade com o fim. Ele sabe onde fica a casa do festeiro de onde sairá a procissão, evento central da festa e motivo solene da vinda delas. E novamente e inesperadamente, sentirá aquela mesma vontade irresistível, nesse caso, a de seguir junto às bandeiras vermelhas e pombas brancas, e junto às senhoras que parecem aproximá-lo de casa, pois está longe, mas assim percebe que nem tanto. A música, a cantoria e os fogos atrairão as pessoas que encherão as portas e janelas. Outras seguirão à procissão e dirão coisas simpáticas ao viajante solitário e o convidarão a visitar suas casas, ao descobrirem de onde ele vem.
O viajante solitário, já cansado de estar só, perceberá que poderá encontrar alguém que conhece superficialmente lá de sua terra natal, mas que vive por ali, está por perto. Ficará surpreso com a qualidade da recepção, ele revela-se um bom amigo, e conhecerá seu filho, que se chama Bernardo e sua esposa, pois os viajantes solitários se reconhecem longe de casa.
Viajar só e eventualmente encontrar amigos desgarrados é tão importante quanto fazer novos amigos para essa categoria de viajante: os solitários. Os lugares por onde passa o deixarão mais perto de casa, o que não aconteceria se sua viagem não fosse só. O viajante solitário quer se autodescobrir, seu objetivo é ele mesmo, por isso despreza planos muito complexos e detalhados. Quanto mais simples e improvisado melhor será o reencontro ou a redescoberta.
Mas o viajante solitário registrará em seu diário um dia ou dois, um pôr-do-sol ou um luar, que deveriam ter sido compartilhados. Eram belos de mais para se contemplar só. Ah, a lua cheia sobre a baía não merece um só par de pegadas na areia da praia.
O viajante solitário, então, nunca se sentirá tão só e fará força para guardar os pormenores sutis e os mínimos detalhes do momento, mesmo sabendo que são os momentos mais estranhos, os de dor ou violência, que se alojam nos espaços estreitos da memória, sacudirá a areia seca que envolve a sua roupa e retomará o caminho ao pier, pois está certo que haverá outros momentos iguais àquele e que existe a possibilidade de viajantes solitários estarem no lugar certo e na hora certa e se encontrarem.
Por ora, decidirá o viajante solitário, é hora de voltar pra casa.
sexta-feira, 13 de março de 2009
Às 18.
A primeira vez na nova casa.
Para chegar até a cozinha tive que cruzar por uma nuvem de mosquitos. Eram tão numerosos que os sentia se chocarem contra a pele do rosto. Cerrei os lábios com o receio de engolir algum, mas decerto levaria um que outro comigo, preso aos cílios, aos cabelos e também levaria juntos aqueles que se embrenhavam nas orelhas, buscando o aconchego morno de meus ouvidos.
Enquanto procurava o disjuntor, sentia percorrer o corpo aquele prazer provocado pela sensação de vingança que viria a seguir, assim que eu encontrasse a maquininha de Flits, o veneno fedorento que derrubaria mais da metade deles e afugentaria os mais resistentes.
Só a enchente tão perto de casa poderia explicar a superpopulação de pernilongos e borrachudos. Claro, que algum incauto morador da velha e quase abandonada edícula contribuiu, deixando as janelas abertas bem ao crepúsculo.
Coloco a água para esquentar para um café preto com bolachas, mas abro o armário e vejo as bolachas mofadas. Contento-me com o café. Sobre a pia a louça está toda limpa, mas ainda sobre o escorredor. Por um breve instante decido secar com o pano de prato tudo o que se amontoa, mas desisto no momento que alcanço a colherinha de cabo preto; a medida certa de açúcar que adoça o meu café.
Mas a fome aperta; o café não vai enganar até o outro dia. Olho para a geladeira velha, azul, de tramela, que alguns pagariam uma fortuna para colocar atrás de um balcão de algum bar cult, mas que compramos no brique, pois foi o que permitiu o dinheiro. Nenhuma possibilidade e fecho a Frigidaire pela segunda vez em dez minutos. Na porta um bilhetinho de Celma onde leio o convite:
- Venha jantar uma horas dessas na casa nova.
Era do lado, há alguns passos de caminhada. Na época não havia celulares nem emails; fui direto, sem aviso.
Percorri um corredor entre a casa e um muro alto. Celma morava nos fundos, assim como eu, numa edícula sem banheiro e, diferente da minha, de um único cômodo.
Ela estava no lado de fora, sentada num mocho, tomando um mate, depois de um dia inteiro de trabalho numa escola de um rincão sem nome, perdido no pampa. O lusque-fusque me amoitou e ela só me percebeu, quando disse:
- Tem o que pra janta hoje?
Preparou a jantinha no fogão de duas bocas, de camping, improvisado sobre uma cômoda, entre um roupeiro e uma cama. Ela comeu em pé; deixou o mocho para a visita e ainda ofereceu uma sobremesa tirada de um livro de nossa mãe que encontrara na mudança. Depois disso as jantas ficaram mais freqüentes
Hoje, quase vinte anos depois, Celma ainda gosta de receber para os jantares, na sua casa de verdade, de vários cômodos, ajardinada de onde só sai, cruzando o caminho de dormentes até o portão de saída, para trabalhar e pagar as contas.
sábado, 7 de março de 2009
Enfim, é só saudade...
Resgatei um dia do meu robusto banco de horas, madruguei e numa manhã chuvosa de sexta-feira estava em Capão da Canoa. Que imenso prazer me deu absorver aquele cheiro de ar salobro e ver as ruas empossadas pela água da chuva, misturada à areia; as pessoas saltitando na ponta dos pés, tentando, inutilmente, não molhar os chinelos.
Dei uma passadinha na padaria para não chegar de mãos vazias na casa da prima Zulmira que àquela hora da manhã ainda devia estar dormindo. Encontrei fácil a casa de tijolos aparentes e nosso primeiro compromisso após o desjejum foi caminhar na praia, ali, há duas quadras, sob a mormaceira, e depois ir visitar a prima Glória Virginia, a qual só conhecia das histórias que ouvia de irmãs e primas e das caixas de biscoitos que chegavam três ou quatro vezes por ano lá em Alegrete, presentes seus, nos anos 80. Ao primeiro olhar me reconheceu, abraçou-me e fugiu para a cozinha a se esconder e chorar, evento que não mais me incomoda. As pessoas ligadas a minha mãe invariavelmente choram ao me ver “gordo e lindo” e não por que me associam a um plano trágico, como já pensei, mas porque ao me verem, sentem saudade da Sirlei que amavam.
Não comeria outra coisa naquela sexta-feira que não peixes e frutos do mar, então não ficamos para o almoço na casa de Glória, onde um feijão cheirava a manjerona lá na varanda, em frente à reserva das corujas.
Passamos em casa, antes do almoço e então, talvez, conhecesse a tia Rosa que, incrivelmente, as estas alturas, ainda não conhecia. Ela entrou baixinha e morena com o aquele sorriso de canto, o caminhar peculiar ladeado que marca quase todas as mulheres de nossa família. Logo me reconheceu e passou a perguntar dos meus. Com excessão das sobrinhas que me avizinham, foi a primeira pessoa em dias que demonstrou uma consternação genuína ao saber da morte recente de Vovó Nair. É que as tias, sempre sabem um pouquinho mais sobre nós do que se imagina. Sangue não é água, já ouvi dizer. Em nossas conversas falamos dos símbolos de nossa família; mais dos Carpes e Caminha, é bem verdade, do que dos Alves Viana, talvez porque a presença dos primeiros é ainda onipresente na vitalidade centenária de vó Nita, enquanto os Viana Alves se bandearam junto ao vô Cândido. Soube de vó Tereza e vô Fritz - tios-avós, na verdade - velhinhos e saudáveis e tive vontade de estar com eles e passei a considerar uma visita na capital.
O sábado amanheceu radiante de sol. Vladimir, parente por tabela, convida para uma caminhada pela praia até Atlântida; proposta irrecusável. Pela orla alcançamos o balneário elegante e cruzamos por muitos conterrâneos desgarrados. Na volta paramos na barraca dos alegretenses onde estive com Ana Regina Gorsky; lado a lado falamos de alegretenses, indiferentes as nossas distantes posições políticas naquele lugar tão democrático: a areia de Capão da Canoa.
Um sábado de sol e eu saí no lucro, pois já nem contava em aproveitar um dia radiante e luminoso; estar na praia já era suficientemente revigorante.