quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Sonhos não atravessam as manhãs

Fez 40 graus esta tarde no Rio. Baixou-me a pressão, recostei-me, adormeci e sonhei. No sonho, estava de volta à rua Sergipe, à casa mista, metade madeira, metade alvenaria, do gradil marrom. Caminhei até o “oitão”, modo peculiar como os mais velhos chamavam a parte ao fundo dos pátios. Até alcançá-lo andei ao largo de um canteiro em linha, bordado de ervas, arrudas, cidreiras, cidrós, manjericão e um já velho pé de alecrim, de onde muitas mudas saíram para outros jardins. Lembrei do salso chorão que habitava o local nos anos da infância, e protegia a casa dos vários cães invariavelmente batizados com nomes de galãs ou heroínas de novelas das oito que ajudei vovó a cuidar. Então cheguei aos fundos da casa baixa. Vi a mesa de pedra, o jasmineiro um pouco mais ao fundo. Detive-me por um instante. Era a hora “de la siesta” e deveria de cuidar do rangido da porta, do pisar no assoalho de madeira. Para chegar até a cozinha, preciso curvar o pescoço; a cabeça bate no patamar. Atravesso-o e a primeira visão é a do fogão à lenha, dos doces de abóbora, dos de batata, dos milhos assados na portinhola e do pão feito em casa, nos quais vovó moldava em massa de trigo uns bonecos, meio disformes, com olhos de feijão. A beira do fogo atravessávamos as noites frias sorvendo o mate-doce de leite, com flores de maçanilhas e vendo o “Tempo e o Vento” na tevê, pois guri medroso, me fazia tremer as canelas os delírios de Bibiana.
As lembranças da cozinha são as mais insistentes, têm cheiro, sabor.
Enfim, segui casa adentro; com cuidado afastei a cortininha do quarto e a vi recostada sobre altos travesseiros, plácida, imóvel, os óculos deitados ao lado. Percorreu-me um frio pela espinha, vendo aquela quietude. Pareceu-me que o maior medo que habitava meus dias de guri havia por fim se apresentado, logo quando decidi retornar, recuperar as tardes perdidas, pensei que ela se debandara para outros cantos.
Cheguei perto e mais perto, com cuidado para não lançar ao chão os bibelôs de louça e vi que ela respirava.
De alívio, senti os músculos relaxarem e identifiquei-me em um sonho e como sonhos não atravessam as manhãs, lamentei.
Avancei a hora de la sesta, coloquei-me em pé e como prometido levei Marcela, a hóspede colombiana, até o Maracanã que tenias ganas de sacar unas fotos.

domingo, 11 de outubro de 2015

A felicidade não acena



Começo citando 2 frases do francês Pascal Bruckner e uma de  Jacques Prévert, mas essa, a 3ª, também citada pelo primeiro:

1.  "No mundo ocidental, quem não é feliz se sente excluído e fracassado", 
2. "A felicidade é extremamente individual e efêmera por definição. Por isso, as pessoas obcecadas em conquistá-la, como a uma propriedade, sofrem em dobro e se distanciam das pequenas alegrias da vida."
... e a melhor a qual cito sempre que me parece apropriado: 
3.  "Reconheço a felicidade pelo barulho que ela faz ao partir".
Se não tivesse ouvido da boca de um amigo esta 3ª frase, a qual toca fundo, logo na primeira vez que se ouve, eu, provavelmente, jamais chegaria até este filósofo francês, jamais saberia da existência dele, mesmo que no Google se encontre milhares de referências sobre o pensador.
Especialmente, esta sentença, é esquisita.  A gente  a entende, pois ela nos arrebata, mas na verdade, a compreendemos sem entender por que ela nos opera este sentimento. É rica em lirismo, apesar de atuar inicialmente como aquelas mensagens subliminares, por mais absurdo que pareça; ela passa e, a gente, num instante a pega e ela se aloja lá dentro, bem fundo, sem que se consiga ao menos ler a placa do caminhão que nos arrebatou.
E sabem por quê? Ela, de alguma forma, consegue em poucas letras, responder à velha questão de natureza ontológica, não “o que é felicidade?”, mas “como é a felicidade?” que, de outra forma, se não responde, dá pistas sobre a resposta da primeira. A felicidade, sim, é uma questão de consciência,  mas nesta frase de 6 ou 7 palavras percebe-se muito claramente que a felicidade age de tal forma peculiar e sutil que a gente nem a vê, não a reconhece; reconhecemos sim a infelicidade, a dor, que aparece quando esse tão almejado estar feliz, transmutou-se no seu oposto, ou seja, a felicidade só se anuncia, quando dá adeus e nada dele se pode recolher se não uma ligeira fagulha, pequena insuficiente para o regozijo, mas plena para plantar a esperança de que ela se reapresente, presto.
Por isso que eu tenho pensado sobre isso, cada vez mais, sobre a importância de se ter, se não muitos, bons amigos, pois  não fosse pelo meu amigo Gilmar Marcílio   - outro filósofo da vida simples e seus prazeres coloquiais; dos tempos felizes - não teria chegado a esta frase, que parece suscitar uma compreensão daquilo que o  ocidente canta como um libelo improvável ou fortuito e que o pensamento não ousa buscar entender sem já anunciar a refutação tenaz logo ali à frente, sem saber que a ciência não é o instrumento capaz de  perscrutar a felicidade, talvez e tão-somente, é capaz de fazê-lo com a alegria, esse elétron da última camada do átomo desta, que se confunde com o sentido da vida e da qual já falamos. 
Frases não conseguem mudar a vida de ninguém, mas conseguem impor uma inquietação que se expande numa corrente de outras inquietações. Comigo, por vezes, é assim.
Quando eu era guri, possivelmente, há mais de vinte anos, acreditava que este país era muito limitado para os meus projetos, que era preciso ir para o estrangeiro; agora já reconheço o que é o estrangeiro, não é preciso ir para lado nenhum. Talvez, dar um pulo em Nova York nos dias que antecedem o Natal e só. Depois, no fim da vida, me recolher mais ao Oeste, sobre esta linha identificada como paralelo 30' S, que dizem ser muito boa para cultivar uvas finas que produzem bons vinhos.
Parece resignação, mas é só efeito da redescoberta de tralhas tão caras como a riqueza que é ter amigos, estes seres que tal qual a felicidade partem, mas, ainda que sem data marcada, retornam.
Penso sobre o que Schopenhauer diria disso? Arrisco afirmar: vai continuar sendo assim, mesmo sabido, ela vai continuar a se anunciar, somente e simplesmente pelo barulho que faz ao, sorrateiramente,  partir. Ela parte, faz barulho sim, mas não acena.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Sofia entre as marcelas.

São incontáveis as coisas que deixam o seu cheiro nas mãos sejam agradáveis ou não. Grudam de um jeito que mesmo depois de 50 lavadas permanecem vivos sobre a pele. Alho, cebola até que não incomodam. O cheiro de atilhos - as borrachinhas de dinheiro - esse sim. É um cheiro irritante. Também são irritantes o dos balões de festa de aniversário. Aquele odor gruda nos lábios, nas mãos, nas roupas e até no cabelo. Mas a lista é extensa e inclui o cheiro dos preservativos gratuitos, dos sacos de lixo, de fígado cru, de salgadinhos Elma Chips e dos perfumes doces que as senhoras botoxizadas usam até para ir ao supermercado, aliás, ao Zaffari.
Mas tens os bons cheiros que permanecem  dias nos arredores, nos flanqueando, carregados não só pelo corpo, mas também pelas roupas ou  pela memória, simplesmente.
Durante a Semana Santa, uma gurizadinha charrua oferecia nas esquinas os pequenos buquês amarelos. Aqui não é comovente vê-los pelas calçadas ajudando as mães nesse ofício meio cigano, por que eles são bem alimentados e saudáveis; diferentemente dos que perambulam pela capital ou em Santa Maria, esses indiozinhos têm as bochechas róseas e são matreiros. Vendiam por 2  ou 3 reais e o vento carregava pelas cercanias aquele aroma  peculiar que logo me arrancava da Praça Dante Alighieri e me jogava na Vila Santos Dumont, aí em Alegrete.
Sexta-feira Santa: a gente se empanturrava de traíra frita, feijão miúdo e arroz com passas de pêssego da vovó Nair, o único que apresentava um tom âmbar e uma calda espessa, e depois seguíamos, de barriga cheia – não, ninguém jejuava – para a tradicional colheita da marcela, e aproveitávamos para carregar a arnica, a carquejinha, também. Percorríamos as margens da BR 290 ou o Campo da Viação, pipocavam pessoas pelas campinas, as famílias se encontravam e trocavam cuias de mate e jogavam conversa fora, os carros paravam e os motoristas, motivados pela movimentação atípica à beira da rodovia, se embrenhavam no macegal para levar a sua parte.
Colhia-se muita marcela com a bênção da Paixão de Cristo; era para dores de barriga de um ano inteiro e para convidar os vizinhos que não puderam sair para a colheita.
Antes de voltar para as casas, parávamos embaixo de alguma sombra, a cachorrada sentava também, depois de ter matado a sede em alguma poça d'água  ou numa sanguinha. Era a hora de catar os pega-pega, e tinha de todos os tipos, em forma de bolota como pequenos ouriços, outros compridinhos como ferrões, e uns miúdos, verdinhos, os mais grudentos. Esses, enrodilhados nas barras das calças, e, principalmente, no cadarço dos Kichutes, conviveriam dias conosco, assim como o cheiro da marcela.
Nessa Sexta-feira Santa, percorri os arredores da colônia com os sobrinhos na procura do chá e, apesar de não serem abundantes, encontramos alguns pezinhos rotos. Deverá ter sido a primeira colheita da marcela da Sofia, que com apenas dois anos corria lépida pelas estradinhas, sob o olhar atento dos colonos, exibindo sua morenice lusitana que se sobrepôs aos traços germânicos que por certo deixaram marcas pouco aparentes.
Hoje, retirei um pulôver do armário e lá estava ele, o cheiro da marcela desse dia, abrindo as gavetas das lembranças, que são, no final, o que realmente importam.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Conto de Natal III

Não espere se deparar com acontecimentos interessantes entre as gôndolas de um supermercado. Mas mesmo sendo improváveis, não quer dizer que não aconteçam.
É nas filas dos caixas que esses acontecimentos fortuitos são mais freqüentes: crianças gritando e esperneando por um brinquedo que o pai não quer dar, descontos anunciados e não concedidos, devoluções, cartões bloqueados, homens comprando absorventes, mulheres comprando preservativos, mas cenas ternas, tocantes são incomuns.
Num dia 23 de dezembro de um ano qualquer dois acontecimentos improváveis agitaram a cabeça de um homem, um gerente de supermercado. No meio da manhã, ele descera da sala de reuniões onde tratou das metas com os seus chefes. As deles estavam sempre abaixo, motivo de grande confusão para um jovem pai de família que se esforçava para fazer o melhor. Caminhava pelo mezanino e lá do alto olhava a loja entupetada de clientes, as imensas filas nos caixas. Como é possível vender tanto e não bater as metas? Era bom com contas, mas nunca entendeu essa lógica do capitalismo, vender sempre, crescer sem parar...
Mal chegou ao balcão de atendimento quando viu que um senhor velho era conduzido por um vigilante na direção da sala onde examinavam os suspeitos de furto. Seguiu na mesma direção, mas foi interrompido por outra funcionária que falava sobre um problema com uma senhora.
- Pede pra esperar que eu já volto – disse o gerente.
Entrou na salinha do interrogatório e encontrou uma cena previsível, iguais a outras que testemunhara ali mesmo, o senhor com as calças arriadas, o vigilante gritando com o homem, dizendo coisas como “ser pobre não é motivo pra roubar’. Ele sentiu, ainda que por um segundo, vontade de esbofetear o ladrãozinho, que estragava o seu dia, tumultuava seu expediente. Deixou que o vigilante fizesse o trabalho sujo.
Mal se ouvia o que o velho dizia, na verdade não o deixavam se explicar, enquanto ele se desfazia de mais e mais roupas até que perceberam que não havia nenhum objeto de furto em poder do velho. Instruíram que se vestisse e fosse embora, e ele foi, de mãos vazias.
Era a vez do problema com a caixa, com a velha.... De longe não deduzia o que diabos acontecia. A mulher queria levar uma toalha decorada com motivos natalinos, dizia que era presente para a nora, mas da sua mão só saiam algumas moedas de centavos e duas ou três notas de cédulas várias vezes amassadas, dobradas, enfiadas em bolsos; não somavam nem 10% do valor da compra. A caixa argumentava, mas a velha não parecia entender. “Só pode ser uma espertalhona ou uma louca que soltaram do hospício”, pensou o gerente, pois ela insistia contando as moedas na frente de todos, uma a uma, desenrolando as notas para que todos vissem que ela tinha dinheiro e queria comprar.
Outra pessoa que aguardava na fila, talvez comovida ou querendo por fim no impasse, ofereceu-se para pagar. O gerente então pensou que talvez essa pessoa, dona de um ato caridoso, já tenha concluído aquilo que ele já conjeturava, de que a velha não era louca, e sim alguém que, como ele, não entendia muito bem a lógica do capitalismo. Nesse momento o gerente retirou o dinheiro do bolso, enfiou na caixa registradora e disse para a velha que ela podia ir, e ela foi levando a toalha vermelha, decorada com motivos natalinos, embrulhada para presente.

Conto de Natal II

Sem dizer uma palavra Josué consentiu que seu pai recolhesse o brinquedo; ele próprio enrolou o Corcel II vermelho, com sirene da polícia, e que andava sozinho com duas pilhas grandes. Usou o mesmo papel de embrulho do presente aberto na noite do dia 24. Com cuidado, tentava deixar o pacote mais parecido ao que veio da loja, pressionava as tiras de Durex que já haviam perdido a cobertura de cola e por isso não fixavam mais, alisava o papel e depois o dobrava guiado pelas marcas deixadas pelas laterais da caixa de papelão. Esperava por algum acontecimento furtivo que mudasse a situação. Havia uma fagulha de esperança, tinha fé: se o brinquedo fosse devolvido à loja, de alguma forma seu pai o resgataria.
- Mulher, não posso cometer essa injustiça!
- Injustiça contra quem? No guri tu não pensas...
Penosamente Josué entregou o pacote. Um sinal com a cabeça e ele consentiu que seu pai saísse levando o que fora, até a pouco, o melhor presente de Natal de sua vida. Por alguns dias ficaria macambúzio, sem mostrar os dentes, mas depois tudo voltaria ao normal.
Os amigos entenderam que era hora de cada um ir para sua casa, mesmo porque sem o Corcel II da polícia, a brincadeira perdia mais da metade da graça.
- Tchau, Josué! Mais tarde a gente volta.
Não demorou muito e a vovó apareceu sob a parreira com uma banana e um copo de leite. Antes de retornar à cozinha falou de seus planos para o reajuste da aposentadoria, que dependendo do que viesse no próximo mês, talvez desse para recuperar o Corcel ou algo que lhe se aproximasse. Samuel só agradeceu e ficou quieto. Ao sair, a velha quis que ele chorasse, pois pensava que se não fosse naquela hora seria depois, quando já homem não é mais razoável chorar. Mas ele não chorou.
Dias antes Plínio queimava os miolos pensando no que dar de presente para o guri naquele Natal. Sabia que queria um Gigantão, todos os guris queriam o caminhão de minério todo amarelão, tão grande que não dava no seu bolso. O guri precisava de um ki chutes, mas sabia que o decepcionaria. Procurava um brinquedo. Namorou muitos na vitrine da Obino, mas eram invariavelmente caros os à pilha. Entrou na loja, viu exposto o Corcel II vermelho com sirene e arriscou perguntar o preço para uma moça que atendia. Ela procurava pelo valor numa pasta, muitas folhas sobrepostas. “Desculpa, eu comecei hoje, ainda me atrapalho”. Era extensa a lista, mas finalmente encontrou o preço. Estava inacreditavelmente barato.
- Vou levar no carnê – disse Plínio, eufórico - Faz um pacote bem bonito tá moça? É pro meu filho.
Dia 26, Plínio chega para almoçar. Estranhou encontrar a vendedora na sala de casa.
- Tava errado o preço Seu Plínio. Se não resolver, vou ter que pagar e ainda vou pra rua.
Nos segundos que se seguiram, Plínio fez as contas que não fechavam e certificou-se de que não poderia arcar com a diferença que era grande. Que remédio senão devolver.
Josué sabia que o pai só fazia o certo, e queria ser como ele. Por isso devolveu, sem reclamar, nada de revolta, mas sabia que não ia ser fácil lidar com aquela tamanha tristeza.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Conto de Natal

Foi Sartre quem disse que a criança toma os seus pais por deuses. “Seus atos como seus juízos são absolutos; eles encarnam a Razão universal, a lei, o sentido e a finalidade do mundo”. Por muito tempo foi assim que Margot enxergou seu pai e por isso sempre esperou dele uma solução para os problemas que ela experimentava, mas não aceitava. Ela recusava-se a admitir-se pobre, não, ela não queria ser pobre mesmo contra todas as evidências como contas atrasadas, cobradores à porta, roupas usadas dos parentes ricos, almoços de domingo sem carne e dois despejos seguidos. Daí esse saber-se pobre não, uma sem eira nem beira, uma marré de si. Queria ser ao menos classe média como seus amigos, como o Flávio da casa geminada da frente, em quem ela planejava dar seu primeiro beijo, na noite de Natal, depois da ceia, enquanto mostrava os presentes que ganhara.
Essa esperança pueril ela depositava em seu pai. Chamava-se Margot por escolha dele. Ela nasceu no mesmo dia que a filha do Hemingway e por isso a homenagem. Uma escolha inteligente de um homem culto, que lia muito e que afastaria de vez esse sentido, essa consciência da própria pobreza.
O Flávio há dias já sabia o que iria desembrulhar na noite de Natal, mais de um pacote era certo: um vídeo-game Atari, um par de tênis com velcro ao invés de cadarços, além das roupas novas para vestir na ceia. Toda a gurizada já sabia o que receberia e entre os presentes aguardados com entusiasmo havia bicicletas, patins, roupas e, Margot, ao ser questionada sobre o que escolhera, ficava sem reposta, precisava desconversar. Haveria um presente sob a árvore, sempre havia, é que ela não lembrava o que ganhara no ano passado e ainda não tinha se dedicado a pensar sobre o que poderia ser o próximo, era impossível prever. Acaso no ano a árvore ficasse vazia, apenas o presépio aos seus pés, ela diria que o pai fizera uma poupança, ou que lhe daria uma viagem. Eles acreditariam, eram bobos aqueles meninos.
Mas foi também Sartre que disse “o problema é quando a criança cresce, e vê de cima os seus pais”. Ela crescera rápido nesses últimos meses, irritava-se mais facilmente, queria coisas que nunca tivera, queria dar o primeiro beijo e ela não via movimentação nenhuma no sentido de compras de Natal.
Noite quente de dezembro, Margot entra em casa, aquele silêncio, tudo tão diferente das casas vizinhas, e vê o pai vencido pelo calor prostrado na poltrona, o mate e a chaleira abandonados ao lado no chão, O Tannenbaum na vitrola. Ela viu o embrulho do presente que de tão pequeno quase não se via entre Reis Magos, vaquinhas e a Sagrada Família. Por isso ignorou, passou reto. Os amigos queriam ver o seu presente, mas por que insistiam tanto? Mais um pouco e ela teria que aplicar a história da viagem, da poupança, mesmo odiando mentiras.
Mas ela voltou em casa. A irmã mais velha chamou a atenção como se dissesse “tenha um pouco de compaixão, é simples, mas é um presente”.
Ela sentiu-se forçada a abrir o pacote e a decepção foi a já esperada, grande, mas não tão intensa quanto à decepção límpida e cristalina que viu estampada no olhar e nas faces morenas de seu pai.