segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Sofia entre as marcelas.

São incontáveis as coisas que deixam o seu cheiro nas mãos sejam agradáveis ou não. Grudam de um jeito que mesmo depois de 50 lavadas permanecem vivos sobre a pele. Alho, cebola até que não incomodam. O cheiro de atilhos - as borrachinhas de dinheiro - esse sim. É um cheiro irritante. Também são irritantes o dos balões de festa de aniversário. Aquele odor gruda nos lábios, nas mãos, nas roupas e até no cabelo. Mas a lista é extensa e inclui o cheiro dos preservativos gratuitos, dos sacos de lixo, de fígado cru, de salgadinhos Elma Chips e dos perfumes doces que as senhoras botoxizadas usam até para ir ao supermercado, aliás, ao Zaffari.
Mas tens os bons cheiros que permanecem  dias nos arredores, nos flanqueando, carregados não só pelo corpo, mas também pelas roupas ou  pela memória, simplesmente.
Durante a Semana Santa, uma gurizadinha charrua oferecia nas esquinas os pequenos buquês amarelos. Aqui não é comovente vê-los pelas calçadas ajudando as mães nesse ofício meio cigano, por que eles são bem alimentados e saudáveis; diferentemente dos que perambulam pela capital ou em Santa Maria, esses indiozinhos têm as bochechas róseas e são matreiros. Vendiam por 2  ou 3 reais e o vento carregava pelas cercanias aquele aroma  peculiar que logo me arrancava da Praça Dante Alighieri e me jogava na Vila Santos Dumont, aí em Alegrete.
Sexta-feira Santa: a gente se empanturrava de traíra frita, feijão miúdo e arroz com passas de pêssego da vovó Nair, o único que apresentava um tom âmbar e uma calda espessa, e depois seguíamos, de barriga cheia – não, ninguém jejuava – para a tradicional colheita da marcela, e aproveitávamos para carregar a arnica, a carquejinha, também. Percorríamos as margens da BR 290 ou o Campo da Viação, pipocavam pessoas pelas campinas, as famílias se encontravam e trocavam cuias de mate e jogavam conversa fora, os carros paravam e os motoristas, motivados pela movimentação atípica à beira da rodovia, se embrenhavam no macegal para levar a sua parte.
Colhia-se muita marcela com a bênção da Paixão de Cristo; era para dores de barriga de um ano inteiro e para convidar os vizinhos que não puderam sair para a colheita.
Antes de voltar para as casas, parávamos embaixo de alguma sombra, a cachorrada sentava também, depois de ter matado a sede em alguma poça d'água  ou numa sanguinha. Era a hora de catar os pega-pega, e tinha de todos os tipos, em forma de bolota como pequenos ouriços, outros compridinhos como ferrões, e uns miúdos, verdinhos, os mais grudentos. Esses, enrodilhados nas barras das calças, e, principalmente, no cadarço dos Kichutes, conviveriam dias conosco, assim como o cheiro da marcela.
Nessa Sexta-feira Santa, percorri os arredores da colônia com os sobrinhos na procura do chá e, apesar de não serem abundantes, encontramos alguns pezinhos rotos. Deverá ter sido a primeira colheita da marcela da Sofia, que com apenas dois anos corria lépida pelas estradinhas, sob o olhar atento dos colonos, exibindo sua morenice lusitana que se sobrepôs aos traços germânicos que por certo deixaram marcas pouco aparentes.
Hoje, retirei um pulôver do armário e lá estava ele, o cheiro da marcela desse dia, abrindo as gavetas das lembranças, que são, no final, o que realmente importam.

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