sábado, 20 de março de 2010

O que falam sobre os franceses.

Há poucos minutos ela estava no palco da Conferência, no centro da mesa, improvisando uma tradução simultânea para as falas de três debatedores, um alemão, outro canadense e um terceiro, italiano. Movimentava-se com desenvoltura naquela Torre de Babel e vertia tudo para o português com uma verve barbosiana. Antes de subir ao palco do centro de eventos, vestia um casaco sobretudo caramelo ¾, e ao livrar-se do agasalho, mostrou-se elegantemente trajada num taier bege, pescoço protegido por uma echarpe e as mãos por luvas.
Sim, luvas brancas de um tecido que lembrava cetim. Ele nunca vira uma mulher vestir luvas de cetim, a não ser nas cerimônias de casamento. Ela retirou-as com delicadeza, revelando mãos tão finas e alvas, e as depositou no interior da bolsa Channel. Agora, estava sentada a sua frente, a uma mesa de café de distância, sorvendo um chá com madeleines, as quais exalavam seu odor de essência de flor de laranjeira pelo recinto. Sabia que era francesa, mas esquecera seu nome. Procurou no programa, mas nenhum lhe pareceu familiar. Outra pessoa, então, perguntou e ela respondeu, "Eléne Truffaut". Será parente do diretor de cinema?, ele pensou, quase ao mesmo tempo em que a pessoa que antes perguntara o nome, para o qual ela tinha a resposta na ponta da língua: "não, não sou parente do cineasta" - e em bom português, completou - "É um sobrenome muito comum na França, o Truffaut, como Silva no Brasil".

Martine, a discípula de Barthes que figurava como a presença mais importante do congresso, aproximou-se e falou alguma coisa no ouvido de Eléne e saiu. Eléne mal se mexeu e ele sentiu um agradável sentimento de proximidade por aquela estrangeira atraente, cabelos negros, contrastando com a alvura da pele. Sentia que poderia abordá-la sem receio, trocar algumas palavras e logo, estaria com o braço em torno daquela cinturinha, ou no mínimo, sentado a sua frente, à mesma mesa, quando poderia convidá-la para tomar uma bebida.
Faltavam as palavras, no entanto. Precisava articular um plano de aproximação, escolher cada palavra do discurso de apresentação. Pensava na literatura francesa, mas conhecia pouco além de alguma novela de André Gide. Se falasse sobre Foucault, se embaralharia. Sobre cinema, o melhor expediente, o parentesco com Truffaut, já tinha sido desperdiçado por uma criatura efeminada que certamente nutria apenas interesses acadêmicos por Eléne.
Esperou que algo lhe ocorresse e enquanto esperava por esta luz, observava o nevoeiro que se formava no final da tarde no parque serpenteado por Plátanos. Distraído, não percebeu que Eléne já o observava nem tampouco que ela se aproximara e estava em pé ao seu lado.
- Vou me sentar – disse Eléne, já puxando a cadeira.
Em minutos ficaram à vontade; ele, impertinente, retirou as luvas brancas das mãozinhas francesas; ela pagou o vinho caro, chileno; ele soube que ela lecionava na Alemanha; que orientava alunos franceses do doutorado na Universidade de Leipzig. Ele, um simples estudante de Comunicação Social, não tinha motivos para resistir ao convite para tomar a última garrafa de vinho na suíte da moça.
Assim que atravessaram a porta do quarto de hotel, Eléne começou a livrar-se das roupas. Ele abriu o vinho, providenciou as taças e antes de servir-se foi até o banheiro tirar a água do joelho.
Agitava-se de excitação. Encontrou-a já quase sem roupa, sentada na borda da cama, distraída enquanto coçava cuidadosamente o calcanhar. A cada roçada de unha um tipo de pó acinzentado soltava da pele de Eléne, acumulando-se em torno do pé direito, formando um acúmulo do que pareciam raspas de queijo Roquefort. Ele se aproximou para ver com mais detalhe. E era isso mesmo, restos de pele, células mortas acumuladas provavelmente pela ausência de banhos regulares. Mas o que sobressaía era o perfume de Eléne e ao ver os seios nus da francesa, levemente caídos, mas com os bicos bastante empinados, não teve dúvidas que teria uma inesquecível noite de prazer.
Ao final, só teve uma certeza: tudo o que falam sobre os franceses é a mais pura verdade.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Para Agustina.

Não vejo sentido nesta promulgada rivalidade entre brasileiros e argentinos. É verdade que tenho mais proximidade com os uruguaios, com sua literatura e música, mas sinto-me freqüentemente mais para a Argentina do que para outras regiões do Brasil; e devemos reconhecer que é fato entre os gaúchos: estamos mais para o sul do que para o norte.
Raramente me prendo à programação do Mais Você, da Ana Maria Braga, mas na quinta-feira última atrasei-me para o trabalho, para acompanhar até o final a entrevista com o ator argentino Mario Jose Paes, o Maradona da novela “Viver a Vida”.
Morando em Búzios há 30 anos, Mario Jose apresentou, em uma excelente reportagem, a cidade que o acolheu e depois foi entrevistado pela apresentadora no que resultou numa conversa extremamente agradável, especialmente pela irresistível simpatia do argentino.
Vendo o programa lembrei-me de boa amiga portenha chamada Agustina Llumá. Bailarina, jornalista; é proprietária de uma das mais importantes publicações sobre arte e cultura da América do Sul, a revista Balentin Dance. Conhecemos-nos em Alegrete, almoçamos, passeamos pela cidade junto ao seu marido, e conversamos sobre nossos interesses comuns como a filosofia e arte. Agustina é uma pessoa de rara amabilidade; sensível, voz serena, boa ouvinte; é uma amiga para toda a vida.
Estas são referências que carrego dos vizinhos, e não aquelas de motoristas imprudentes que cruzam nossas estradas no verão, ou dos veranistas que emporcalham nossas praias. Meus amigos argentinos são pessoas civilizadas; sem dúvida é esta a origem da minha descrença na desavença, e, ainda, devo crer que há civilizados e incivilizados por toda a parte.

Para Nelson.

Na noite de segunda-feira para terça perdi o sono, o que não é um evento raro. Como de costume liguei a tevê para me distrair e, quem sabe, retomar os sonhos. Passava o filme “Cinema, aspirinas e urubus”, para mim, o melhor filme brasileiro dos últimos anos, sobre a amizade insólita entre um alemão e um sertanejo. O alemão percorre o sertão vendendo aspirinas em uma fubica, nos dias que antecedem a entrada do Brasil na Segunda Guerra. Ele dá uma carona ao sertanejo que busca o progresso do sul, enquanto ele foge dos horrores da velha Europa. A separação dos dois é iminente. Em algum momento haverá o afastamento como é corrente nas histórias sobre amigos.

Só pode ser coincidência, pensei, pois a poucas horas me despedira do amigo Nelson Kullmann, no crematório de São Leopoldo. Alemão brasileiro, ela travara sua própria batalha, mas contra um inimigo implacável, um câncer insidioso no cérebro. Gostava de manter longas conversas em torno de uma churrasqueira, comigo inclusive, em suas visitas regulares a Alegrete. Raramente tínhamos a mesma opinião sobre os temas que discorríamos, o que só fortalecia o nosso respeito mútuo. Seu Nélson foi a pessoa que mais sinceramente demonstrou acreditar em minhas competências que até mesmo eu duvido, por vezes, que as tenha. Dele só ouvia palavras de encorajamento, de incentivo e, por isso, mas não só por isso, vou sentir muitas saudades de nossas conversas regadas a chimarrão, vinho chileno ou cerveja e sempre ao som da orquestra de Andre Rieu.