sexta-feira, 17 de abril de 2009

Para lembrar o mestre nos seus 200 anos

ANNABEL LEE *(de Edgar Allan Poe)

Foi há muitos e muitos anos já,
Num reino de ao pé do mar.
Como sabeis todos, vivia lá
Aquela que eu soube amar;
E vivia sem outro pensamento
Que amar-me e eu a adorar.
Eu era criança e ela era criança,
Neste reino ao pé do mar;
Mas o nosso amor era mais que amor
O meu e o dela a amar;
Um amor que os anjos do céu vierama ambos nós invejar.
E foi esta a razão por que, há muitos anos,
Neste reino ao pé do mar,
Um vento saiu duma nuvem, gelando
A linda que eu soube amar;
E o seu parente fidalgo veioDe longe a me a tirar,
Para a fechar num sepulcroNeste reino ao pé do mar.
E os anjos, menos felizes no céu,
Ainda a nos invejar...
Sim, foi essa a razão
(como sabem todos, Neste reino ao pé do mar)
Que o vento saiu da nuvem de noite
Gelando e matando a que eu soube amar.
Mas o nosso amor era mais que o amor
De muitos mais velhos a amar,
De muitos de mais meditar,
E nem os anjos do céu lá em cima,
Nem demônios debaixo do mar
Poderão separar a minha alma da alma
Da linda que eu soube amar.
Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos
Da linda que eu soube amar;
E as estrelas nos ares só me lembram olhares
Da linda que eu soube amar;
E assim 'stou deitado toda a noite ao lado
Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,
No sepulcro ao pé do mar,
Ao pé do murmúrio do mar.

Traduzido por Fernando Pessoa

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Nossos pais e nossos cães.

“Em verdade, é estranho não mais habitar a terra, não praticar mais os costumes recém-aprendidos, não mais conferir às rosas, nem a outras coisas promissoras, a significação de um futuro humano...”
Rilke

Havia muito barulho nas redondezas e muitas coisas a fazer. Curso de inglês on-line, responder a e-mails. Uma manhã de sexta acelerada. Incomum para uma sexta – casual day de um desempregado. Senti o cheiro de fresias, flores que cheiram a chá. Profusão do incenso que queimava sobre a estante de livros. Imaginei-as brancas, frescas e perfeitas - as fresias. Na tela do laptop piscava a barra laranja do messenger.
Entendi o piscar incessante; a pessoa do outro lado dizia “Seu Osório faleceu”. Imaginei-o à calçada da Joaquim Antônio, cuia do mate em uma das mãos, cachorros à volta; dois labradores; um coquer, um vira-lata. Aquela sexta denunciava que o nosso inverno estava de dias contados; não esse inverno, todos os invernos, o inverno como estação. Seu Osório estaria feliz, pois como todo o trabalhador rural, gerente de lavouras de arroz, o frio não lhe trazia boas lembranças, toda aquele barro, toda aquela água e mais a geada; por isso somente era possível vê-lo à calçada ao fim das tardes amenas. Do contrário, estaria dando um jeito de fazer um fogo na lareira ou num chão, galpão qualquer que tivesse lenha. Coisas simples de um homem simples, cujo maior desejo em vida era ver os filhos formados ou encaminhados; o que ele viu.
A morte sempre é triste, não acredito em boa morte. Mas se há o mais próximo disso – da boa morte – há de ser o mínimo sofrimento físico e a felicidade na alma. Meu pai, disseram os médicos, morreu antes de cair ao chão, tal a força do enfarte. Morreu ao lado de um cão fujão, dos netos. Não sofreu, mas duvido que tenha morrido feliz. Seu Osório sofreu dores e desconforto, mas feneceu depois de uma longa vida de 75 anos dedicada a um projeto que viu cumprido. Morreu feliz, certamente.Ele não escreveu nenhum livro, mas tinha pauta para vários. Era um contador de histórias daqueles que só a aridez do pampa produz; expoente da mestiçagem ibérica e pelo – duro. Lembrava de todos os personagens e de suas inter-relações, de modo a deixar cair de inveja letrados quaisquer. Mais do que isso, sabia todos os nomes e a forma como os apresentava, não deixava dúvida sobre o caráter dos quais discorria. Talento cada vez mais raro esse, que contraria a tese de que os velhos não têm boa memória.
Se quiséssemos representar o homem alegretense como Paixão Cortes para o Laçador, seu Osório seria um bom candidato. Foi peão, gerente e dono de lavoura de arroz. Casou-se e teve filhos. Foi vereador do velho MDB durante os anos de chumbo. Tinha no falar, no andar, na alma a estirpe do gaúcho e chegou a experimentar a sensação ímpar de ouvir que ia ser avô.
Há pessoas que não morrem, fenecem, pois o seu legado está em todos os lados para testemunho e inspiração.

sábado, 11 de abril de 2009

Pesadelos

Poucas vezes tenho pesadelos, mas quando os tenho o tema central, o plot, é invariavelmente sobre as guerras. Já lutei em tantas delas que as vezes acredito que não sou o covarde que já julguei ser e me vejo como um valente, cheio de coragem heróica, mas os sonhos me traem e logo eu me vejo de novo, escondendo-me dos meus inimigos que me perseguem. Escondo-me em porões, atrás de trincheiras, em velhas casas abandonadas. Este é o momento que o pesadelo se torna mais cruel; reconheço que não consigo lutar e me acordo sobressaltado e com medo.
Porque não creio em Deus não rezo e tampouco tomo um copo de leite morno; sou alérgico a lactose. Resta enfrentar a insônia e é prudente cerrar bem fortemente os olhos, antes que os móveis, o guarda-roupas, a escrivaninha e o criado mudo vejam que estou despertado e começem a tagarelar sem pena de meus ouvidos.

A canção de Marlene.

"Ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas".
E. E. Cummings

É uma sala ampla, em um prédio dos anos 40, vê-se pela altura do pé-direito e pelo vão das aberturas. Os moveis; estantes, mesas e escrivaninha, remetem ao início do século 20. Mesas de fórmica e armários metálicos destoam do geral. As raridades, no entanto, são os livros que pertenceram a um político e diplomata, cujo retrato ocupa lugar de destaque na sala. No lugar há apenas uma mulher, estudante de arquivologia, que trabalha como voluntária da catalogação e recuperação do acervo. Seu nome é Marlene e trabalha junto a um professor de história, que coordena os trabalhos. O professor chama-se Domingos. Ambos são jovens. Ela acadêmica e bolsista, 24 ou 25 anos. Ele professor doutorando, por volta dos 30 anos.
A bolsita abre algumas janelas e atravessa a sala até uma mesa que apara um aparelho de som. Ela põe um cd, fecha o pequeno compartimento e pressiona o play. Uma música começa a tocar. Marlene aprecia inicialmente e depois reduz o volume. Ela está em pé, próximo à mesa central da sala. Organiza alguns volumes.
A porta da biblioteca se abre. Ouve-se o som do sininho preso no alto da porta. Entra Domingos. Põe o casaco em um cabide e junto, a mochila.O professor resmunga enquanto despe um pesado casaco de lã.
Domingos:
- Pensei ter dito para retirarem esta campainha. Biblioteca é lugar de silêncio.
Marlene:
- Bom dia, professor. É uma harpa eólica...
Domingos:
- O quê?
Marlene:
- Uma harpa eólica....
Domingos:
- Se é uma harpa eólica, devia estar onde há vento...
Marlene não demonstra irritação. Domingos caminha em sua direção. Ela o vê caminhando em slowmotion. Os dois ficam frente a frente com a mesa coberta de livros entre eles, as mão próximas, prostradas sobre um volume de Irmãos Karamazov.Ao fundo toca a canção preferida de Marlene e ela sente que deve tocar a mão de Domingos. Seu coração dispara, a harpa eólica dindala e Marlene esconde sorrateiremante a mãozinha pálida no bolso do seu casaco de kashimir.