segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Conto de Natal III

Não espere se deparar com acontecimentos interessantes entre as gôndolas de um supermercado. Mas mesmo sendo improváveis, não quer dizer que não aconteçam.
É nas filas dos caixas que esses acontecimentos fortuitos são mais freqüentes: crianças gritando e esperneando por um brinquedo que o pai não quer dar, descontos anunciados e não concedidos, devoluções, cartões bloqueados, homens comprando absorventes, mulheres comprando preservativos, mas cenas ternas, tocantes são incomuns.
Num dia 23 de dezembro de um ano qualquer dois acontecimentos improváveis agitaram a cabeça de um homem, um gerente de supermercado. No meio da manhã, ele descera da sala de reuniões onde tratou das metas com os seus chefes. As deles estavam sempre abaixo, motivo de grande confusão para um jovem pai de família que se esforçava para fazer o melhor. Caminhava pelo mezanino e lá do alto olhava a loja entupetada de clientes, as imensas filas nos caixas. Como é possível vender tanto e não bater as metas? Era bom com contas, mas nunca entendeu essa lógica do capitalismo, vender sempre, crescer sem parar...
Mal chegou ao balcão de atendimento quando viu que um senhor velho era conduzido por um vigilante na direção da sala onde examinavam os suspeitos de furto. Seguiu na mesma direção, mas foi interrompido por outra funcionária que falava sobre um problema com uma senhora.
- Pede pra esperar que eu já volto – disse o gerente.
Entrou na salinha do interrogatório e encontrou uma cena previsível, iguais a outras que testemunhara ali mesmo, o senhor com as calças arriadas, o vigilante gritando com o homem, dizendo coisas como “ser pobre não é motivo pra roubar’. Ele sentiu, ainda que por um segundo, vontade de esbofetear o ladrãozinho, que estragava o seu dia, tumultuava seu expediente. Deixou que o vigilante fizesse o trabalho sujo.
Mal se ouvia o que o velho dizia, na verdade não o deixavam se explicar, enquanto ele se desfazia de mais e mais roupas até que perceberam que não havia nenhum objeto de furto em poder do velho. Instruíram que se vestisse e fosse embora, e ele foi, de mãos vazias.
Era a vez do problema com a caixa, com a velha.... De longe não deduzia o que diabos acontecia. A mulher queria levar uma toalha decorada com motivos natalinos, dizia que era presente para a nora, mas da sua mão só saiam algumas moedas de centavos e duas ou três notas de cédulas várias vezes amassadas, dobradas, enfiadas em bolsos; não somavam nem 10% do valor da compra. A caixa argumentava, mas a velha não parecia entender. “Só pode ser uma espertalhona ou uma louca que soltaram do hospício”, pensou o gerente, pois ela insistia contando as moedas na frente de todos, uma a uma, desenrolando as notas para que todos vissem que ela tinha dinheiro e queria comprar.
Outra pessoa que aguardava na fila, talvez comovida ou querendo por fim no impasse, ofereceu-se para pagar. O gerente então pensou que talvez essa pessoa, dona de um ato caridoso, já tenha concluído aquilo que ele já conjeturava, de que a velha não era louca, e sim alguém que, como ele, não entendia muito bem a lógica do capitalismo. Nesse momento o gerente retirou o dinheiro do bolso, enfiou na caixa registradora e disse para a velha que ela podia ir, e ela foi levando a toalha vermelha, decorada com motivos natalinos, embrulhada para presente.

Conto de Natal II

Sem dizer uma palavra Josué consentiu que seu pai recolhesse o brinquedo; ele próprio enrolou o Corcel II vermelho, com sirene da polícia, e que andava sozinho com duas pilhas grandes. Usou o mesmo papel de embrulho do presente aberto na noite do dia 24. Com cuidado, tentava deixar o pacote mais parecido ao que veio da loja, pressionava as tiras de Durex que já haviam perdido a cobertura de cola e por isso não fixavam mais, alisava o papel e depois o dobrava guiado pelas marcas deixadas pelas laterais da caixa de papelão. Esperava por algum acontecimento furtivo que mudasse a situação. Havia uma fagulha de esperança, tinha fé: se o brinquedo fosse devolvido à loja, de alguma forma seu pai o resgataria.
- Mulher, não posso cometer essa injustiça!
- Injustiça contra quem? No guri tu não pensas...
Penosamente Josué entregou o pacote. Um sinal com a cabeça e ele consentiu que seu pai saísse levando o que fora, até a pouco, o melhor presente de Natal de sua vida. Por alguns dias ficaria macambúzio, sem mostrar os dentes, mas depois tudo voltaria ao normal.
Os amigos entenderam que era hora de cada um ir para sua casa, mesmo porque sem o Corcel II da polícia, a brincadeira perdia mais da metade da graça.
- Tchau, Josué! Mais tarde a gente volta.
Não demorou muito e a vovó apareceu sob a parreira com uma banana e um copo de leite. Antes de retornar à cozinha falou de seus planos para o reajuste da aposentadoria, que dependendo do que viesse no próximo mês, talvez desse para recuperar o Corcel ou algo que lhe se aproximasse. Samuel só agradeceu e ficou quieto. Ao sair, a velha quis que ele chorasse, pois pensava que se não fosse naquela hora seria depois, quando já homem não é mais razoável chorar. Mas ele não chorou.
Dias antes Plínio queimava os miolos pensando no que dar de presente para o guri naquele Natal. Sabia que queria um Gigantão, todos os guris queriam o caminhão de minério todo amarelão, tão grande que não dava no seu bolso. O guri precisava de um ki chutes, mas sabia que o decepcionaria. Procurava um brinquedo. Namorou muitos na vitrine da Obino, mas eram invariavelmente caros os à pilha. Entrou na loja, viu exposto o Corcel II vermelho com sirene e arriscou perguntar o preço para uma moça que atendia. Ela procurava pelo valor numa pasta, muitas folhas sobrepostas. “Desculpa, eu comecei hoje, ainda me atrapalho”. Era extensa a lista, mas finalmente encontrou o preço. Estava inacreditavelmente barato.
- Vou levar no carnê – disse Plínio, eufórico - Faz um pacote bem bonito tá moça? É pro meu filho.
Dia 26, Plínio chega para almoçar. Estranhou encontrar a vendedora na sala de casa.
- Tava errado o preço Seu Plínio. Se não resolver, vou ter que pagar e ainda vou pra rua.
Nos segundos que se seguiram, Plínio fez as contas que não fechavam e certificou-se de que não poderia arcar com a diferença que era grande. Que remédio senão devolver.
Josué sabia que o pai só fazia o certo, e queria ser como ele. Por isso devolveu, sem reclamar, nada de revolta, mas sabia que não ia ser fácil lidar com aquela tamanha tristeza.