Vó Martina morava em São Francisco de Assis, numa chácara, bem perto da Sanga da Benta. Nas férias de verão passava uns dias com a velha; não me recordo de um acontecimento desagradável que marcasse aquelas breves estadas em São Chico, além de ter, pela primeira vez, desde que tenho noção de minha humanidade, ingerido leite de vaca. Detestava leite e derivados. Gostava mesmo era de tomar café preto gelado num copo alouçado de ½ litro. Para a outra avó, a de Alegrete, representava um sério agravo à saúde. Ela, que me acompanhava desde que mamãe, dada a heroísmos, foi traída pela falta de vasopressina na batalha contra uma hemorragia, tentava de tudo para mudar aquele hábito, sem sucesso. De volta a Alegrete e depois daquela primeira xícara de leite, por um misterioso motivo, abandonei a caneca de café preto gelado, para sempre, e passei a tomar leite como era de se esperar de um guri em fase de crescimento.
Nas férias em São Chico, não havia acontecimento maior que a chegada de vô Marciano do Toroquá, homem de poucas expressões, que só deixava escapar emoções através do azul do olhos e a partir de alguns breves gestos, como o de presentear. Da bagagem retirava morcilhas, queijos, goiabada, açúcar mascavo e muita rapadura, mandada pela tia Antoninha. Era um folguedo. Na verdade, a ida ao Super Safra, o supermercado da cidade, por vezes a superava. Para a empreitada a vó Martina penteava os longos cabelos brancos até as pontas que quase acariciavam os calcanhares, sentada a uma cadeira de palha, sob a vasta parreira, perto do poço d'água. Lembrava uma velha navaja dos filmes. Depois enrolava tudo num coque, pegava o sacolão de couro, a pequena bolsinha cravejada de pedras e subia, despacito, a ladeira, seguida por mim e pela prima Roseane, que morava por lá, desde que sua mãe atinara subverter a capital federal. Era dia de Super Safra e de se empanturrar de guloseimas, comprar revistinhas e ainda tomar um sorvete na volta, obviamente, acompanhado de uma garrafa de guaraná Sielva.
Numa dessas idas à cornucópia assisense, conheci a Maria Circuiti, pessoalmente. Dela, só tinha ouvido falar, mas a reconheci logo que a vi surgir entre as gôndolas. Soluçava e dava saltinhos a cada vez que pronunciava aquela palavra que entre muitas, encarna a feição mais chula da desejada cavidade feminina que, dizem, derrubou reis e aniquilou impérios. Estava a minha frente a mulher que bradava o palavrão, sinônimo de vagina, para os quatro ventos. Apesar dos risos que causava ao passar, via nela um imenso sofrimento. Sabia de histórias, a primeira vista, engraçadas e, de outras, desoladoras. Ela não foi ao casamento da filha, a funerais de parentes, pois o seu distúrbio que se enquadra dentro da chamada Síndrome de Tourette, se agrava em momentos de forte emoção. Amiga de minha vó, era figura freqüente na chácara e nos acostumamos com o seu tique nervoso.
Há tempos, numa festa, comentei com amigos sobre a maldição da triste D. Maria. Não acreditaram, mas dias depois mudaram de posição, quando a história foi ter em ouvidos de outra pessoa que a confirmou.
Pessoas não acreditam na ida do homem à lua, outros na física-quântica, mas acreditam em numerologia, mapa-astral, por isso acredito que grande parte daquilo que acreditamos depende de como andamos tratando nossa cosmovisão.
2 comentários:
Muito interessante João. Tem mais histórias pra nos contar?
Como tudo que escreves: saboroso.
Como uma caneca de leite, dos tambos da São Francisco de Assis. Minha terra natal. De lá, lembro muito bem é de nossa bisavó Almerinda, longeva como a filha, que tirou leite até muito tempo. Tinha as mãos esquálidas e lindos olhos azuis. Nariz adunco. E, como a tua avó, penteava aqueles cabelos longos pra prendê-los em um coque que lhe dava um ar de certa nobreza. Era Viana cruzada com Carpes e Caminha pelo casamento.`Êta raça lusitana...
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