segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Salsos chorões

Era em Alegrete, na Vila Santos Dumont, que me pendurava nas ramas densas de um salso. O galho, lá no alto, vergava verde e me lançava desde o muro até quase o meio da rua e nunca se entregava; a cada dia ficava mais resistente e, ainda assim, não perdia a flexibilidade.
Então, retirei de um livro o nome pelo qual passei a chamá-lo de um certo dia em diante: salgueiro. Não entendera o salso, na verdade e, tão logo parti, perdeu o chorão o embate com o muro na afeição dos seus proprietários e lhe cerraram as bases.
Foi em Pequim que compreendi o salgueiro, não o chorão, o salgueiro, levemente inclinado, a árvore chinesa por excelência.O salgueiro tem qualquer coisa de evasivo. A sua folhagem é impalpável, o seu movimento assemelha-se a uma confluência de correntes. Tem mais do que as que se vêem, do que as que deixa ver. Não há árvore menos ostensiva. E embora sempre fremente (não o estremecimento breve e inquieto das bétulas e dos choupos), é como se o ar o ignorasse e o deixasse vogar e nadar despreendido, sempre no seu lugar ao vento, como o peixe na corrente do rio.É pouco a pouco que o salgueiro nos forma, dando-nos todas as manhãs a sua lição. E uma paz feita de vibração nos toma, de tal modo que finalmente já não podemos abrir a janela sem sentir vontade de chorar.

domingo, 16 de agosto de 2009

Pensamentos de um homem livre.

Estamos em maio. Quarta semana. Dia frio para maio. Nessa manhã concluiu ao ver parte da cama desarrumada e ainda quente:
- Enfim, envolvido.
Inesperado foi virem à cabeça pensamentos de homem livre e desejar repentinamente tomar um ônibus e ir ter na grande cidade mais próxima e reencontrar alguns amigos do tempo de universidade e alguns outros apresentados por estes amigos da universidade. Especialmente agradável foi se imaginar na casa de alguém que mora próximo a uma praia – de mar, é claro. Alguns dias, sem data marcada para retornar. Podia sentir a areia sob os pés e o vento que vinha da mata sacudir a palha dos quiosques. Escolheria uma das espreguiçadeiras e ficaria prostrado, talvez lendo alguma amenidade, talvez jogado ao ócio completo, fazendo esforço para registrar cada segundo daquele momento fugidio, enquanto os barcos brancos desaparecem atrás das mil ilhas.
Mas isso, esses pensamentos, só duraram alguns breves momentos. Depois, passou a ter exclusivamente pensamentos de prisioneiro. Obviamente, não preso a uma cela, mas a um quarto de uma janela que nunca era aberta, a uma sala sem móveis; nem mesmo uma poltrona vermelha com algumas almofadas para recostar e folhear um livro, a paredes sem quadros, a cantos sem plantas.
Existem inúmeras formas de se sentir privado de liberdade. A cela é a melhor encarnação dessa privação, mas como naquela campanha de um jornal que sugere breves aprisionamentos urbanos, mostrando a foto de um longo engarrafamento, há outros modelos de cárceres. A disciplina humana representa bem um modelo crônico, o de se habituar a tudo e tardiamente surpreender-se prisioneiro. Atormentava-o, no entanto, o desejo por outra pessoa, não uma pessoa em especial – a humanidade é razoavelmente especial. O quarto vazio se enchia de pessoas que havia conhecido em outros contextos e as quais desejara. Um arroubo agudo de homem livre. Era possível ver detalhes de seus corpos e o motivo do desejo engendrado neles; as caras, naturalmente, eram mais reais, pálpebras fechando-se e revelando longos cílios negros, pontas de língua umedecendo lábios e um ou outro joelho à mostra, panturrilha flexionada visível. Servia, com eficiência, para passar o tempo, mas o seu tempo se esgotava, sinal que não estava tão aprisionado assim, pois o que um prisioneiro mais tem, é tempo.
Ligou a tevê. Não havia sinal de canal algum. Talvez nem tivesse antena. Vestiu as calças, escovou os dentes, saiu. O dia estava frio e ensolarado. Jogou a chave por debaixo da porta. Talvez retornasse, mas sem data marcada. Como o próprio Jean Sorel, dizia “tenho pão e sou livre.”
Encolhido e com as mãos apertadas no bolso da calça jeans, seguiu. Sentia o vento minuano gelado cortar a pele do rosto, sentimento maior de um homem livre.