Foi Sartre quem disse que a criança toma os seus pais por deuses. “Seus atos como seus juízos são absolutos; eles encarnam a Razão universal, a lei, o sentido e a finalidade do mundo”. Por muito tempo foi assim que Margot enxergou seu pai e por isso sempre esperou dele uma solução para os problemas que ela experimentava, mas não aceitava. Ela recusava-se a admitir-se pobre, não, ela não queria ser pobre mesmo contra todas as evidências como contas atrasadas, cobradores à porta, roupas usadas dos parentes ricos, almoços de domingo sem carne e dois despejos seguidos. Daí esse saber-se pobre não, uma sem eira nem beira, uma marré de si. Queria ser ao menos classe média como seus amigos, como o Flávio da casa geminada da frente, em quem ela planejava dar seu primeiro beijo, na noite de Natal, depois da ceia, enquanto mostrava os presentes que ganhara.
Essa esperança pueril ela depositava em seu pai. Chamava-se Margot por escolha dele. Ela nasceu no mesmo dia que a filha do Hemingway e por isso a homenagem. Uma escolha inteligente de um homem culto, que lia muito e que afastaria de vez esse sentido, essa consciência da própria pobreza.
O Flávio há dias já sabia o que iria desembrulhar na noite de Natal, mais de um pacote era certo: um vídeo-game Atari, um par de tênis com velcro ao invés de cadarços, além das roupas novas para vestir na ceia. Toda a gurizada já sabia o que receberia e entre os presentes aguardados com entusiasmo havia bicicletas, patins, roupas e, Margot, ao ser questionada sobre o que escolhera, ficava sem reposta, precisava desconversar. Haveria um presente sob a árvore, sempre havia, é que ela não lembrava o que ganhara no ano passado e ainda não tinha se dedicado a pensar sobre o que poderia ser o próximo, era impossível prever. Acaso no ano a árvore ficasse vazia, apenas o presépio aos seus pés, ela diria que o pai fizera uma poupança, ou que lhe daria uma viagem. Eles acreditariam, eram bobos aqueles meninos.
Mas foi também Sartre que disse “o problema é quando a criança cresce, e vê de cima os seus pais”. Ela crescera rápido nesses últimos meses, irritava-se mais facilmente, queria coisas que nunca tivera, queria dar o primeiro beijo e ela não via movimentação nenhuma no sentido de compras de Natal.
Noite quente de dezembro, Margot entra em casa, aquele silêncio, tudo tão diferente das casas vizinhas, e vê o pai vencido pelo calor prostrado na poltrona, o mate e a chaleira abandonados ao lado no chão, O Tannenbaum na vitrola. Ela viu o embrulho do presente que de tão pequeno quase não se via entre Reis Magos, vaquinhas e a Sagrada Família. Por isso ignorou, passou reto. Os amigos queriam ver o seu presente, mas por que insistiam tanto? Mais um pouco e ela teria que aplicar a história da viagem, da poupança, mesmo odiando mentiras.
Mas ela voltou em casa. A irmã mais velha chamou a atenção como se dissesse “tenha um pouco de compaixão, é simples, mas é um presente”.
Ela sentiu-se forçada a abrir o pacote e a decepção foi a já esperada, grande, mas não tão intensa quanto à decepção límpida e cristalina que viu estampada no olhar e nas faces morenas de seu pai.
segunda-feira, 29 de novembro de 2010
segunda-feira, 8 de novembro de 2010
Sobre a verdade
Vó Martina morava em São Francisco de Assis, numa chácara, bem perto da Sanga da Benta. Nas férias de verão passava uns dias com a velha; não me recordo de um acontecimento desagradável que marcasse aquelas breves estadas em São Chico, além de ter, pela primeira vez, desde que tenho noção de minha humanidade, ingerido leite de vaca. Detestava leite e derivados. Gostava mesmo era de tomar café preto gelado num copo alouçado de ½ litro. Para a outra avó, a de Alegrete, representava um sério agravo à saúde. Ela, que me acompanhava desde que mamãe, dada a heroísmos, foi traída pela falta de vasopressina na batalha contra uma hemorragia, tentava de tudo para mudar aquele hábito, sem sucesso. De volta a Alegrete e depois daquela primeira xícara de leite, por um misterioso motivo, abandonei a caneca de café preto gelado, para sempre, e passei a tomar leite como era de se esperar de um guri em fase de crescimento.
Nas férias em São Chico, não havia acontecimento maior que a chegada de vô Marciano do Toroquá, homem de poucas expressões, que só deixava escapar emoções através do azul do olhos e a partir de alguns breves gestos, como o de presentear. Da bagagem retirava morcilhas, queijos, goiabada, açúcar mascavo e muita rapadura, mandada pela tia Antoninha. Era um folguedo. Na verdade, a ida ao Super Safra, o supermercado da cidade, por vezes a superava. Para a empreitada a vó Martina penteava os longos cabelos brancos até as pontas que quase acariciavam os calcanhares, sentada a uma cadeira de palha, sob a vasta parreira, perto do poço d'água. Lembrava uma velha navaja dos filmes. Depois enrolava tudo num coque, pegava o sacolão de couro, a pequena bolsinha cravejada de pedras e subia, despacito, a ladeira, seguida por mim e pela prima Roseane, que morava por lá, desde que sua mãe atinara subverter a capital federal. Era dia de Super Safra e de se empanturrar de guloseimas, comprar revistinhas e ainda tomar um sorvete na volta, obviamente, acompanhado de uma garrafa de guaraná Sielva.
Numa dessas idas à cornucópia assisense, conheci a Maria Circuiti, pessoalmente. Dela, só tinha ouvido falar, mas a reconheci logo que a vi surgir entre as gôndolas. Soluçava e dava saltinhos a cada vez que pronunciava aquela palavra que entre muitas, encarna a feição mais chula da desejada cavidade feminina que, dizem, derrubou reis e aniquilou impérios. Estava a minha frente a mulher que bradava o palavrão, sinônimo de vagina, para os quatro ventos. Apesar dos risos que causava ao passar, via nela um imenso sofrimento. Sabia de histórias, a primeira vista, engraçadas e, de outras, desoladoras. Ela não foi ao casamento da filha, a funerais de parentes, pois o seu distúrbio que se enquadra dentro da chamada Síndrome de Tourette, se agrava em momentos de forte emoção. Amiga de minha vó, era figura freqüente na chácara e nos acostumamos com o seu tique nervoso.
Há tempos, numa festa, comentei com amigos sobre a maldição da triste D. Maria. Não acreditaram, mas dias depois mudaram de posição, quando a história foi ter em ouvidos de outra pessoa que a confirmou.
Pessoas não acreditam na ida do homem à lua, outros na física-quântica, mas acreditam em numerologia, mapa-astral, por isso acredito que grande parte daquilo que acreditamos depende de como andamos tratando nossa cosmovisão.
Nas férias em São Chico, não havia acontecimento maior que a chegada de vô Marciano do Toroquá, homem de poucas expressões, que só deixava escapar emoções através do azul do olhos e a partir de alguns breves gestos, como o de presentear. Da bagagem retirava morcilhas, queijos, goiabada, açúcar mascavo e muita rapadura, mandada pela tia Antoninha. Era um folguedo. Na verdade, a ida ao Super Safra, o supermercado da cidade, por vezes a superava. Para a empreitada a vó Martina penteava os longos cabelos brancos até as pontas que quase acariciavam os calcanhares, sentada a uma cadeira de palha, sob a vasta parreira, perto do poço d'água. Lembrava uma velha navaja dos filmes. Depois enrolava tudo num coque, pegava o sacolão de couro, a pequena bolsinha cravejada de pedras e subia, despacito, a ladeira, seguida por mim e pela prima Roseane, que morava por lá, desde que sua mãe atinara subverter a capital federal. Era dia de Super Safra e de se empanturrar de guloseimas, comprar revistinhas e ainda tomar um sorvete na volta, obviamente, acompanhado de uma garrafa de guaraná Sielva.
Numa dessas idas à cornucópia assisense, conheci a Maria Circuiti, pessoalmente. Dela, só tinha ouvido falar, mas a reconheci logo que a vi surgir entre as gôndolas. Soluçava e dava saltinhos a cada vez que pronunciava aquela palavra que entre muitas, encarna a feição mais chula da desejada cavidade feminina que, dizem, derrubou reis e aniquilou impérios. Estava a minha frente a mulher que bradava o palavrão, sinônimo de vagina, para os quatro ventos. Apesar dos risos que causava ao passar, via nela um imenso sofrimento. Sabia de histórias, a primeira vista, engraçadas e, de outras, desoladoras. Ela não foi ao casamento da filha, a funerais de parentes, pois o seu distúrbio que se enquadra dentro da chamada Síndrome de Tourette, se agrava em momentos de forte emoção. Amiga de minha vó, era figura freqüente na chácara e nos acostumamos com o seu tique nervoso.
Há tempos, numa festa, comentei com amigos sobre a maldição da triste D. Maria. Não acreditaram, mas dias depois mudaram de posição, quando a história foi ter em ouvidos de outra pessoa que a confirmou.
Pessoas não acreditam na ida do homem à lua, outros na física-quântica, mas acreditam em numerologia, mapa-astral, por isso acredito que grande parte daquilo que acreditamos depende de como andamos tratando nossa cosmovisão.
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