sábado, 8 de maio de 2010

Complexo de Julien Sorel.

“Perdi minha vida por delicadezas”
Artur Rimbaud


Já me chamaram de estranho por gostar de ópera, e por dizer que a melhor cantora do mundo é uma negra americana, que canta em alemão.Já me chamaram de cabeçudo, narigudo e gordo e é certo que ser cabeçudo não tem jeito, mas gordo não sou mais, e o tamanho do nariz posso resolver com uma rinoplastia; só se eu quiser.Algumas coisas têm jeito, outras não.Já me chamaram de confuso e eles têm certa razão, pois ando confundindo mesmo as coisas. Tenho confundido Thomas Hobbes com Thomas Morus, Frei Jaime com Frei Celso, que são freis e Capuchinhos, mas não a mesma pessoa. Admito que ande esquecendo o nome de algumas pessoas, de atores, de filmes, versos de alguns poemas; mas garanto que não fumo maconha e que já marquei a tomografia.
Já me disseram denso, o que deixei para trás para ser tenso, mas preferia a minha velha densidade. A tensão endurece os músculos, pesa a cabeça, tomba os ombros. A densidade nos põe no topo, ainda que imaginário, um topo.
Já me disseram viado por não jogar futebol, de bicha por ler Irmãos Grimm no recreio, indiferentes ao fato de que toda esta história de viado, bicha, tem a ver com sexualidade e pouco com esportes e livros.
Já me perguntaram numa entrevista se sofria de alguma fobia, pois um homem que não tem habilitação pra dirigir aos 30 não deve ser normal, ignorando o fato de que já dirigi trator, camionete, fubica, caminhão velho, lancha, planador, dirigível e asa-delta e o que é melhor; sem nunca ter atropelado alguém. A vida é que, não sei, talvez não esteja sendo bem conduzida, mas é que ainda não pilotei espaço-nave.
Já me chamaram de grosso por ser franco e fingido por ser gentil.
De mentiroso por gostar de metáforas.
De fofoqueiro por ajudar a uma amiga.
De sovina por não dividir a conta do mecânico.
De otário por pagar a dívida, que não era minha, com o serralheiro e a serigrafia...
Já me chamaram de traidor por beijar a ex-namorada de um amigo.
De fiasquento por mandar flores, arrependido, para esse amigo.
De fraco por chorar sempre que leio “Dois Guaxos” do Faraco.
De covarde por ter fugido da briga e por ter medo de tubarão branco.
De bêbado por beber cerveja, ignorando que não bebo uísque.
De frágil por abominar baratas e de idiota por ter nascido.
A verdade é que tem criança que chora ao me ver partir, cãozinho que faz festa ao me ver chegar. Indiferentes aos meus muitos defeitos, tenho amigos, incluindo alguns, que, a caminho da Austrália, passaram por aqui pra se despedir, e incluindo outros que acordam cedo pra me dar 50 contos e um beijo no rosto.
A verdade é que a felicidade me ronda, apesar da rinite/sinusite, da hérnia, do bruxismo, das roupas velhas do armário, dos poucos livros novos na estante.
A verdade, a boa e velha verdade, é que sou livre, tenho pão e sou livre, e assim vou continuar a ser.
Já me chamaram de estranho por gostar de ópera...