segunda-feira, 15 de junho de 2009

Cartas do ermo.

Escrevo-lhe do fim do mundo. Há dias as cerrações não nos deixam ver palmo adiante do nariz. Cada vez que abro o armário, encontro mais casacos e pulôveres mofados. Tudo sucumbe ao fungo nesta terra.
Não há vento nem sol. Será que a vida pode prosseguir na terra sem sol, sem movimento atmosférico, sem o tremer das árvores?
Uma amiga jornalista diz que é como viver em Londres e eu completo dizendo que até pode ser, mas sem o Tamisa e sem nenhum charme.
Há tumultos por todo o prédio. É possível que o vizinho de cima esteja se mudando pelo arrastar de móveis e o barulho que vem do último andar, falou-me o outro vizinho, só pode ser o senhorio que resolveu trocar as caixas d’água.
Trocar as caixas d’água! Para que? É uma nova norma da prefeitura. Se pelo menos fosse numa segunda-feira...
Abro o jornal diário e leio a notícia das mais curiosas sobre a investigação de um subprefeito que é acusado de má gestão do dinheiro público. Nada de novo além do depoimento de uma funcionária que se soma ao inquérito. Ela afirma ter sido obrigada a cuidar do filho bipolar do subprefeito. Tinha que fazer expediente na casa do chefe e levar o rapaz até o psiquiatra uma vez por semana e, apesar de toda essa dedicação, era forçada a ouvir os gritos e as grosserias do homem durante o expediente. Mais uma vítima de assédio moral. Em sua defesa disse o subprefeito: “o que esperam de um gringo aqui no meio do mato?”. Foi esta mesmo a resposta que ele deu, meu caro.
Que gritem e esbravejem, decerto. Mas do distrito que comanda não se pode dizer que é um lugar selvagem, pelo contrário, é bastante urbanizado; há algumas grandes indústrias por lá e também um considerável fluxo de turistas. Tu vais gostar do castelo que abriga uma cantina. Deveria arrumar uma melhor desculpa, este senhor, não acha?
Do filho bipolar do subprefeito passo a pensar em um novo amigo. Trabalha na lancheria aqui perto de casa, aliás, casa de lanches, lancheria é pejorativo. Atende a todos sem falar uma palavra. Não me intrigara até então, pois a expressividade no olhar dava conta de toda a comunicação necessária a uma ação de varejo. Quando puxei a banqueta e me aproximei do balcão – sabes como é, pois bem me conheces – puxei aquela conversa e então percebi o silêncio unilateral. O silêncio tinha um significado, todavia, nenhuma causa aparente. Não se parece com trauma familiar, pois são bastante amistosos todos os parentes os quais não se incomodam com o silêncio do primogênito. Não é surdo-mudo, autista e nem o gato comera a sua língua. Um belo dia ele parou de falar; simples assim. Na verdade falava com a mãe, mas só o estritamente necessário. O irmão nascido depois já veio ao mundo com o direito de ouvi-lo; são dois ao todo, então, que ouvem a sua voz. Os outros devem se contentar com acenos, bilhetes e expressões faciais.
É curioso, mas não espantoso nem estranho vê-lo procurar o irmão de 11 anos para ser seu intérprete em situações mais complexas. Ele cochicha discretamente no ouvido do pequeno e o menino rapidamente completa a interlocução.
Como vês, meu caro, em todo o lugar, cada um de se defende com as armas que tem.
Mas voltando as cerrações e por causa delas sugiro que adies tua visita. Não é por mal, mas penso que não terás boa receptividade. Há alguns roteiros mais agradáveis, nesta época. Se bem que não falo como um turista e então tudo pode ser uma questão de ponto-de-vista.
Se decidires vir, avise logo, pois preciso providenciar mais um aquecedor.