segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Um punhado de memórias.

No sonho, desci do ônibus e segui pela rua de paralelepípedos. Entrei pelo portão de grades metálicas marrons, bem, não sei ao certo a cor; talvez fosse bordô a cor correta, mas então segui pela calçada que circunda a casa mista de madeira e alvenaria. Caminhei até o “oitão”, modo peculiar como os mais velhos chamavam a parte ao fundo dos pátios. Até alcançá-lo andei ao largo de um canteiro em linha, bordado de ervas, arrudas, cidreiras, cidrós, manjericão e um já velho pé de alecrim, de onde muitas mudas saíram para outros jardins. Lembrei do salso chorão que habitava o local nos anos da infância, e protegia a casa dos vários cães invariavelmente batizados com nomes de galãs ou heroínas de novelas das oito que ajudei vovó a cuidar. Então cheguei aos fundos da casa baixa. Vi a mesa de pedra, o jasmineiro um pouco mais ao fundo. Detive-me por um instante. Era a hora “de la siesta” e deveria de cuidar do rangido da porta, do pisar no assoalho de madeira. Para chegar até a cozinha, preciso curvar o pescoço; a cabeça bate no patamar. Atravesso-o e a primeira visão é a do fogão à lenha, dos doces de abóbora, dos de batata, dos milhos assados na portinhola e do pão feito em casa, nos quais vovó moldava em massa de trigo uns bonecos, meio disformes, com olhos de feijão. A beira do fogo atravessávamos as noites frias sorvendo o mate-doce de leite, com flores de maçanilhas e vendo o “Tempo e o Vento” na tevê, pois guri medroso, me fazia tremer as canelas os delírios de Bibiana.
As lembranças da cozinha são as mais insistentes, têm cheiro, sabor.
Enfim, segui casa adentro; com cuidado afastei a cortininha do quarto e a vi recostada sobre altos travesseiros, plácida, imóvel, os óculos deitados ao lado. Percorreu-me um frio pela espinha, vendo aquela quietude. Pareceu-me que o maior medo que habitava meus dias de guri havia por fim se apresentado, logo quando decidi retornar, recuperar as tardes perdidas, pensei que ela se debandara para outros cantos.
Cheguei perto e mais perto, com cuidado para não lançar ao chão os bibelôs de louça e vi que ela respirava.
De alívio, senti os músculos relaxarem e identifiquei-me em um sonho e como sonhos não atravessam as manhãs, lamentei.

“Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida. Nunca tive outra preocupação verdadeira senão a minha vida interior. Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser. E alinho na minha imaginação, confortavelmente, como quem no Inverno se aquece a uma lareira, figuras que habitam, e são constantes e vivas, na minha vida interior. Tenho um mundo de amigos dentro de mim, com vidas próprias, reais, definidas e imperfeitas. E quando penso isto, passeando pelo meu quarto, falando alto, gesticulando... quando sonho isto, e me visiono encontrando-os, todo eu me alegro, me realizo, me pulo, brilham-me os olhos, abro os braços e tenho uma felicidade enorme, real.”